1 de junho de 2011

Cópia, ditado, descrição e composição

No curso primário, ora denominado ensino fundamental, já entravamos alfabetizados. A alfabetização ocorria em casa, através dos pais, ou professoras particulares (quem podia), ou nos Jardins de Infância (com brincadeiras, etc) ou, ainda, nos cursos pré-primário.

Aos 7 anos de idade, sabendo identificar as letras, soletrar e desenhar o próprio nome, ingressava-se na escola para cursar a primeira série do curso primário. Eram 5 séries, até que éramos promovidos para a segunda etapa, que e era o curso ginasial. Em seguida, após os 4 anos de ginásio, cursávamos ou o científico ou o clássico, em 3 anos, o que nos qualificava para o vestibular. Nâo havia, por desnecessários, cursinhos preparatórios para vestibular.

Mas hoje e aqui, pretendo enfocar a questão do escrever corretamente, obedecendo à gramática e em consonância com a língua chamada culta.

Nos anos 1940/1950, o processo de aprendizado da lingua portuguesa, escrita, era simples e compreendia 4 etapas, a saber:

Num primeiro momento, tínhamos que copiar um texto selecionado pela professora. A cópia precisava ser fiel, ou seja, em obediência à grafia e acentuação das palavras do texto.

Ao tempo em que éramos exigidos no quesito atenção, íamos nos familiarizando com as palavras, seu significado e emprego. E, porque não, já tomando gostinho pela leitura. Os trechos escolhidos eram, em geral, de livros infantis e de autores celebrados, como Monteiro Lobato, ora cassado pelo Ministério da Cultura (argh!) A professora corrigia anotando no caderno: “muito bem”; “precisa mais atenção” e coisas correlatas.

Já mais acostumados com as palavras, suas grafias e acentuações corretas, passávamos à época dos ditados. Nesta fase, precisávamos ir escrevendo o que a professora lia em voz alta, pausadamente, para que todos tivessemos tempo de acompanhar e escrever. Na correção do ditado, eram observados os erros na forma de escrever, e as palavras que não foram escritas porque não entendíamos. O ditado era devolvido aos alunos, com as devidas correções e este trabalho escolar deveria ser apresentado em casa aos pais, para ciência. A professora colocava conceitos, em tinta vermelha, tipo: “muito bom, parabéns”; “bom”, “insuficiente”. Se fosse hoje, poderiamos caracterizar as correções da professora como preconceito linguístico e irmos ao Diretor da escola apresentar queixar. Quem sabe ameaçando um processo.

O ditado era um horror para nós.

Já nas etapas, ou séries, mais avançadas, ainda no primário,  o que tinhamos que fazer era uma descrição. Precisava ser um relato, tão fiel quanto possível, do que teria sido nosso final de semana, por exemplo. Ou da festa junina no bairro ou da festa de aniversário. Tudo era observado e avaliado pela professora. Não somente a escrita correta, mas também a concatenação do pensamento e encadeamento das ações e fatos. Poderia, eventualmente, ser indicado um livro para nossa leitura e, depois, narrarmos a história, sucintamente, com nossas próprias palavras. Já envolvia interpretação de texto.

Por último, já dominando com certa desenvoltura as palavras, estávamos aptos para fazer as composições, quando deveríamos dissertar sobre um tema, compor uma história. Neste trabalho escolar, contava a criatividade, a imaginação. Lógico que eram considerados os erros de concordância, de escrita, de pontuação, mas o desenvolvimento da idéia contava muito.

No terceiro e último ano do curso científico (fiz uma opção equivocada, deveria ter feito o curso clássico, mais adequado para quem iria fazer ciências humanas), lembro perfeitamente que os temas escolhidos pelo professor de português (que era diferente do de literatura), exigiam alguma cultura geral de outras disciplinas, assim como estarmos antenados no noticiário. Na prova final o tema foi eutanásia. Se hoje já é meio complicado desenvolver este assunto, imagine aos 18 anos de idade. Há mais de 50 anos.

Já devem ter percebido o abismo existente entre a sistemática de ensino há 50 ou 60 anos, e a que propõe a educadora Helena Ramos, em seu malsinado livro “Por uma vida melhor”.

Fiz vestibular em 1962; a prova escrita de português, naquele ano, excepcionalmente, a par de ser eliminatória, exigia uma nota mínima igual ou superior a 6 (podem comprovar na UFF).

Pois bem, tinha que ser feita uma dissertação sobre o tema “A guerra e a paz”. Observem que não era sobre “Guerra e Paz”, famoso romance de Leon Tolstói, embora fosse possível, no desenvolvimento do texto, tangenciar a festejada obra.

Era coisa para leitor - e de obras clássicas – para a hipótese de mencionar o romance, e, ainda, possuidor de boa cultura geral e bom nível de informação, que tivesse principalmente uma certa fluência na escrita. Ou seja, ex-alunos da professora Helena Ramos não teriam chance.

As perguntas que faço, são as seguintes:

Digamos, na prova do ENEM, daqui a alguns anos, qual será o critério de correção da redação?

Vai valer “os livro”? E a linguagem chula, grosseira, será admitida? Por que se o aluno entender ser a mais adequada, na visão de Helena Ramos valeria. E se o professor não aprovar, poderá o aluno recorrer à via judicial sob fundamento de preconceito?

E nos concursos para preenchimento de vagas no serviço públlico ou empresas públicas (Banco do Brasil, Correios)? Será admitido “nós pega o peixe”?

Não demora, um professor de matemática vai criar o delito de preconceito aritmético, a ser alegado por quem responder que dois mais dois não somam quatro, e sim cinco.

E, cá para nós, se alguém que não conheço se dirige a mim dizendo que tem um poblema, eu direi, como um certo amigo o fez há alguns anos, você não tem um, mas dois problemas.

E não seria preconceito, pois eu não o conhecia; seria, na verdade, um caso de conceito ruim a partir da fala errada do interlocutor. Ou seja, é preciso entender que "pré  conceito" é alguma coisa pré-existente.

Evanildo Bechara
 

Transcrevo o ensinamento do Prof. Evanildo Bechara*, estampado nas páginas amarelas de VEJA:

"Alguns de meus colegas subvertem a lógica em nome de uma doutrina  que só serva para tirar de crianças e jovens  a chance de ascenderem socialmente."

E encerro com a norma nº 8, do decálogo de Noam Chomsky**, em artigo publicado:

Noam Chomsky
 "Manter o público na ignorância e na mediocridade. Fazer com que o público seja incapaz de compreender as tecnologias e os métodos utilizados para seu controle e sua escravidão. A qualidade da educação dada às classes sociais inferiores deve ser a mais pobre e medíocre possível, de forma que a distância da ignorância planejada entre as classes inferiores e as classes sociais superiores seja e permaneça impossível de ser alcançada para as classes inferiores."


*Evanildo Cavalcante Bechara é um professor, gramático e filólogo brasileiro.
É membro correspondente da Academia das Ciências de Lisboa e doutor honoris causa pela Universidade de Coimbra. Professor Titular e Emérito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Federal Fluminense (UFF), além de titular da cadeira nº 16 da Academia Brasileira de Filologia e da cadeira 33 da Academia Brasileira de Letras.(Wikipédia)
**Avram Noam Chomsky é um linguista, filósofo e ativista político estadunidense. É professor de Linguística no Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Em didático artigo, Chomsky listou as “10 estratégias de manipulação” das elites. (Wikipédia)

Imagens: Google

2 comentários:

Carlos Frederico disse...

Carrano
A distância entre o que relata e a atualidade é astronômica. Seu exemplo foi português, mas na Internet rola piada sobre evolução similar no ensino da matemática, com o uso de múltipla escolha e... bem, deixa pra lá.
Assusta-me, e acho que já postei esse comentário, a subida a cargos de mando e de poder de pessoas criadas nesse contexto, o que nos atingirá como cidadãos justo quando nossas forças estiverem no ocaso... Teremos de seguir as leis e normas ditadas por essa... massa disforme...

Jorge Carrano disse...

O que me deixou mais aflito foi o fato do Ministro da Educação ir ao Congresso e defender a malsinada obra e seu uso nas escolas.
Tive esperança que ele, mesmo que de maneira discreta, sem milindrar os autores daquele bestialógico método didático, mandasse suspender a distribuição e emprego do livro em questão.
Mas qual o quê.
Abraço. Apareça sempre por aqui. Sem compromisso.