31 de maio de 2011

Sobre sermos ou não analfabetos

Por
Carlos Frederico Marques Barroso March

Aposentado e sem atividades formais em meu cotidiano, matriculei-me no início de 2009 no curso superior de Licenciatura em Música, ministrado na Universidade Cândido Mendes, em Nova Friburgo. Tê-lo abandonado com apenas um mês de aulas não vem ao caso no momento. Uma das matérias era Português Instrumental e um texto ("Ler o Mundo", do Affonso Romano de Sant'Anna, O Globo, 12/11/2000) nos foi apresentado para análise e debate. Ele suscitou reflexões sobre o assunto "analfabetismo" e registro minhas impressões a seguir.

Dicionário Eletrônico Houaiss:

Analfabeto:
1 que ou aquele que desconhece o alfabeto; que ou aquele que não sabe ler nem escrever
2 que ou aquele que não tem instrução primária
3 Derivação: por extensão de sentido.
que ou o que é muito ignorante, bronco, de raciocínio difícil
4 Derivação: por extensão de sentido. Regionalismo: Brasil.
que ou aquele que desconhece ou conhece muito mal determinado assunto ou matéria
Ex.: ser (um) analfabeto em política, em matemática

Não pude deixar de me lembrar de minha falecida avó Carolina. Portuguesa "da aldeia", como se definia querendo significar ter sido criada no ambiente rural português na virada do século XIX para o XX, não aprendeu a ler. Na aldeia só se trabalhava. Alguma coisa como, por exemplo, escrever o seu próprio nome naquela caligrafia incerta ela ainda conseguia, já que ao longo dos anos conseguiu absorver algo como autodidata, mas era pouco mais que analfabeta - no sentido formal da palavra.

No entanto, como a velhinha era culta na decifração das emoções, usando a leitura da tal da linguagem corporal ! Como nos valemos vezes sem conta de sua imensa habilidade para dirimir rusgas, que eram muitas por conta de condições particulares de nossa conturbada família... De nada valia nosso vasto conhecimento da língua portuguesa - incluindo meus pais, eu e meu irmão, mais vovô - frente aos conhecimentos que minha saudosa avó, dita analfabeta, tinha das relações humanas!


Schloss Neuschwanstein


 Por conta dessas lembranças e com a mente viajando agora pelo meu passado, nos meus vinte e poucos anos tive ocasião de me pilhar eu mesmo analfabeto. Foi quando passei sete meses estudando na Alemanha, nos idos de 1977. Eu sabia algo de inglês, que era a língua a ser usada no treinamento, e rudimentos de francês. No entanto, ao passear pelas ruas de Munique e arredores, ser confrontado com aquele monte de letras, aqueles "palavrões" intermináveis, me dava vislumbres do que devia pensar e sentir um sujeito que não aprendeu a ler.


Não, eu não estava sendo pleno e justo em minha avaliação, dado que ao menos conseguia soletrar os "palavrões" e, com a ajuda de um dicionário e de algumas poucas dicas gramaticais, saber do que se tratava o assunto, nem que por alto. A gente (eu e minha esposa Mary) ao menos conseguia até fazer compras de gêneros com certa desenvoltura e aprendemos a ouvir os preços. Ao menos os preços !

Engraçado: porque a quase totalidade dos analfabetos sabe contar dinheiro? Continuemos...


ideogramas japoneses

 Não, isso não é nada perto da visão aterrorizante dos ideogramas orientais! Isso sim é ser analfabeto. De pai e mãe, como se costuma dizer por aí. Nunca tive muita vontade de ir à China, ou ao Japão, Coréia e vizinhos, só de medo de me pilhar incapaz de sequer vislumbrar o que se trata cada "monte de pauzinhos". Anafalbetismo: teoria e prática!



alfabeto - hebraico
 
 Inclua aí o mundo árabe, a escrita judaica...

Bem vindo ao clube, meu caro Carlos Frederico! Você é, portanto, também um analfabeto!



tríade
 Isso nos traz à música, que aliás era o tema em estudo na tal aula da Universidade. Não são muitos aqueles que conseguem ler um texto musical, melhor dizendo uma pauta. O que nos leva mais uma vez à inadequação da formalidade dos conceitos, dado que muitos autores e intérpretes consagrados - pelo menos na música popular - fizeram fama sem nem saber do que se trata uma clave de sol.
 
Tim Maia



Exagero meu, talvez, mas é fato sabido que Tim Maia não sabia ler música. Acrescento aí os Beatles no início de carreira, o que trouxe problemas diversos a seu empresário para registrar e salvar os direitos autorais das músicas que tomavam de assalto o mundo. Citarei ainda o ABBA, famosa banda pop sueca vendedora de 360 milhões de discos entre singles, LPs e CDs. Alguns devem conhecer o musical "Mamma Mia!", ainda em cartaz em diversos países.





Componentes originais do ABBA, em foto de 2008
 numa divulgação do musical,
da esquerda para a direita:1º Benny; 5ª Agnetha; 6ª Frida; 12º Björn

  Ele é baseado em algumas das músicas do ABBA, ligeiramente modificadas e encadeadas dando forma a um enredo simples mas plausível. Pois saibam que o primeiro grande passo dos realizadores deste musical foi resgatar os detalhes finos de cada partitura (essenciais para ensaios dos atores cantores) através da audição compasso a compasso de toda a discografia, dado que nada estava registrado em pautas!

Vai daí, concluo que o rótulo de analfabeto pode ser extremamente injusto se aplicado indiscriminadamente e com intenção pejorativa, pois depende do contexto. Todos nós o somos, em algum aspecto de nossas vidas.


16 comentários:

Carrano disse...

Carlos Frederico,
No meu tempo de ginasiano, havia a disciplina Canto Orfeônico. Além de aprender os hinos (Nacional, Independência, Bandeira, etc), tive oportunidade de aprender rudimentos, tais como a norma que, na clave de sol, sobre as linhas da pauta ficam as notas mi, sol, si, ré e fá. Nos intervalos ficariam fa, lá dó e mi.
E, ainda, que uma colcheia valia a metade de uma semínima.
Consegui, neste pequeno espaço, declinar toda a minha cultura musical.
Quanto a questão do analfabetismo, concordo que é circunstancial. Entre os xavantes eu me sentiria um idiota.
Abraço e obrigado, de novo, por enriquecer o blog suscitando um tema importante.

Carlos Frederico disse...

Carrano, agradeço a oportunidade. Confesso que sinto-me meio inseguro quanto a esse texto, dado que foi escrito em fevereiro/09 numa penada só como reflexão sobre o tal artigo "Ler o Mundo" e apresentado tal e qual. Hoje talvez eu o escrevesse de outra maneira, mas achei legal publicá-lo como saiu de minha cabeça naquele dia.

Carlos Frederico disse...

Ah, sim, sobre Canto Orfeônico! Minha professora cismou comigo porque eu já tinha o diploma de Teoria Musical e estudava piano. Seria autodefesa, medo que eu discordasse de algo que ela teria a dizer? Só sei que não guardo boas lembranças. Cantar com as mãos às costas !! Só me faltava... (rs rs)

Ana Maria disse...

Jorge. Nossa avó portuguesa tb era aldeã e analfabeta. O interessante, que corrobora o comentário da CF, é que as filhas ignoravam essa situação, tendo em vista sua habilidade ao lhes corrigir os erros de concordância e a esperteza ao alegar a fraca visão pra se furtar de ler qualquer texto.
Ah! Nas aulas de música no Colégio, tive oportunidade de conhecer Villa Lobos, Carlos Gomes, clássicos de nosso folclore e Hinos de nosso país. Pra mim valeu.

Jorge Carrano disse...

Você, Ana Maria, tinha aptidão musical, estudou um pouco de piano e talvez tenha tido professor ou professora mais qualificada pra as aulas de Canto Orfeônico.
Minha turma gostava de vocalizar o Cisne Branco e olhe lá.

Gusmão disse...

Por falar em idioma, que tal o Hungaro?
Tem alguém que não seja analfabeto naquela lingua?
Gusmão

Carlos Frederico disse...

Muita gente tem reclamado de se sentir analfabeto na República Tcheca. Berço das cervejas pilsen, temos notícias de que a culinária local é muito boa para ser acompanhada de uma espetacular Pilsner Urquell, uma das melhores do mundo. Olhar o cardápio e não saber escolher é digno de analfabetos de pai e mãe, com um agravante: não adianta ouvir a explicação, o analfabetismo também é oral !!!

Jorge Carrano disse...

Realmente Carlos, o idioma dos tchecos é de doer.
Todavia, nos últimos anos, com a queda das barreiras, o chamado "leste europeu" passou receber muitos turistas e com isso, pelo menos em Praga (cidade as ser visitada), nos restaurantes, hoteis, e principais lojas de souvenires, pelo menos, as pessoas já arranham o inglês.
Por acaso, viu Gusmão, e na mesma viagem, visitei tanto Budapeste quanto Praga e realmente são linguas absolutamente ininteligíveis.

Carlos Frederico disse...

E não nos diz nada sobre ter degustado lá a Pilsner Urquell?

Pra quem não sabe, foi em Plzen, na Rep. Tcheca, que um alemão (Josef Groll) descobriu em 1842 o método de fabricação de um tipo de cerveja que hoje é a mais consumida em todo mundo: a pilsen! E essa cerveja, límpida, dourada e fresca, foi chamada de Pilsner Urquell, que significa "oriunda de Plzen". Fabricada até hoje, é provavelmente a pilsen mais famosa do mundo! E você esteve lá !!

Jorge Carrano disse...

Pois é, Carlos, estive lá. Você iria adorar o relógio astronômico que tem no prédio da Prefeitura de Praga. Funciona ainda. A cada hora, uma multidão de turistas se amontoa diante do prédio para assistir o funcionamento do mecanismo.
Em matéria de cervejas, sem desmerecer as Pilsen, das que conheço ainda fico com a Guiness (irlandesa), que tomei muito em Londres.
Bem, você morou na Alemanha e deve ter experimentado boas cervejas por lá.
Abraço.

Jorge Carrano disse...

Carlo Frederico,
Para você e quem mais tiver interesse em conhecer o famoso relógio astronômico, indico o vídeo que está em http://www.youtube.com/watch?v=Iq-eEywbv2o.
Tenho fotos, mas não filme.
Abraço

Gusmão disse...

Um dos baratos de viajar é ter o que contar.
Por isso, quando posso, faço as malas.
Confesso que não sou muito apreciador de cerveja, prefiro vinho.
Mas o assunto era analfabetismo e fomos parar num bar, pelo visto.
Saúde!
Gusmão

Gusmão disse...

Mas não vinho tcheco, pelo amor de Deus!!!
Em Praga, cerveja, óbvio.
Melhor explicar, né.
Gusmão

Jorge Carrano disse...

Pois é, caro Gusmão, não pode fazer como um amigo meu, há muitos anos, foi ao Mercado Modelo e no restaurante Camafeu de Oxóssi queria comer pato a califórnia.
Eu me deliciei com uma moqueca de siri catado e ele praguejou o resto da viagem.
Também gosto de vinho, mas isto não exclui apreciar uma boa cerveja. Tudo depende de lugar, hora e companhia.
Abraço

Anônimo disse...

Existe alguma espécie de cartilha onde é possível encontrar os ideogramas?
Já li que alguns ideogramas têm mais de um significado.
Seria mais ou menos como escrever manga e só saber ao que queremos nos referir pelo assunto? Se falamos de frutas ou parte de uma camisa?

Freddy disse...

Não, não conheço nenhuma cartilha. Hoje em dia existem diversos cursos de mandarim, pois a aproximação comercial da China está provocando interesse. De repente, conversar com alguém nessas escolas de idiomas e pegar alguma informação...
No entanto, sua analogia da manga é boa, só que lá eles levam isso ao exagero. E mais, o raciocínio dos orientais é diferente do nosso, a maneira de interpretar mentalmente o mundo e as pessoas. Não se trata apenas de aprender-lhes a linguagem.
Abraço
Carlos, analfabeto em ideogramas !