18 de outubro de 2011

O Moldava

Por
Carlos Frederico M B March

Fui criado envolto em música clássica, ou numa nomenclatura mais abrangente, erudita. Meus pais haviam comprado, entre outras, uma coleção de LP's editada pela Reader' Digest chamada Festival de Música Clássica Ligeira (olha aí mais sub-classes) e eu passava horas, dias, ouvindo aqueles discos. Aos poucos fui me agradando de algumas peças em especial, que se tornaram minhas favoritas até hoje

Não demorou, chegou minha adolescência e, junto com ela, The Beatles, The Rolling Stones e todo o cenário musical mudou! Menos radical que a maioria, no entanto, mantive-me afeiçoado a ambos os mundos: popular e erudito. A consequência natural foi a paixão por uma das vertentes mais elaboradas do rock, o chamado Rock Progressivo.

Sendo bem genérico, esse tipo de rock segue uma linha similar a certas categorias de música erudita.

Bedrich Smetana, retrato de 1854

Não, não precisam me bater já, hoje não vou me estender sobre Rock Progressivo! O objetivo deste post é falar sobre uma das peças que elegi como uma das mais representativas de minha infância e passagem para a adolescência: o poema sinfônico "O Moldava", do compositor tcheco Bedrich Smetana.

Poema sinfônico? É, meus caros, também em música erudita há classes e subclasses.(Nota do autor: refiro-me aqui a críticas ácidas quanto à quantidade de tipos e subtipos do rock e do heavy metal)*.

Poemas sinfônicos são peças nas quais a música procura descrever uma paisagem ou fato da maneira mais fiel possível e Smetana foi um dos precursores do gênero, junto com Franz Liszt. "O Moldava" é o segundo de seis poemas conjuntamente denominados "Má Vlast", livremente traduzido como "Minha Terra", ou "Meu País".

Em particular, "Má Vlast" também situa Smetana numa vertente da música clássica do século XIX  denominada de nacionalista, que tem vários compositores ilustres dos quais citarei apenas Frédéric Chopin. Eram compositores que jogavam na música toda sua paixão pela terra natal, muitas das vezes com intenções políticas.

Count Waldstein's Castle, na cidade
natal de Smetana
Bedrich Smetana nasceu em Litomysl (02-03-1824), localidade nas vizinhanças de Praga, na então Bohemia e atualmente República Tcheca. Descrições detalhadas de sua biografia, da série "Má Vlast" ou do próprio "O Moldava" podem ser encontradas a torto e a direito na Internet, de modo que não vou dissecá-los, mas apenas registrar algumas de minhas principais emoções a respeito desse poema e seu autor.

O Moldava" é uma obra de arte, em si. Conheço uma penca de pessoas que, sem saber nada sobre seu libreto, a amam. É uma peça descritiva de pouco mais de 12 minutos, e o próprio Smetana teria dito como explicação para ela:

"A composição descreve o curso do Rio Moldava a partir de suas duas pequenas nascentes: o Moldava Frio e o Quente. Com a unificação de ambos os fluxos em uma corrente única, o curso do Moldava segue pelos bosques e prados, através de paisagens onde o casamento de um fazendeiro é celebrado e ouve-se uma ciranda de sereias ao luar. Sobre rochedos nas proximidades erguem-se orgulhosos castelos, palácios e ruínas. O rio redemoinha nas Corredeiras de St. John para, em seguida, se alargar e adentrar Praga, passando pelo Vysehrad, e depois desaparecer majestosamente na distância, terminando no Elba."

Vista aérea de Praga e do Rio Moldava

A transcrição dessas paisagens para a pauta é perfeita, você fecha os olhos e vê tudo isso passando em sua mente. Torna-se mais impressionante ainda quando se é informado das condições nas quais Bedrich Smetana compôs seus poemas sinfônicos.
Ele vinha adoecendo desde meados de 1874 e uma surdez foi se alastrando com rapidez. Repentinamente, em 20 de outubro daquele ano, Smetana acordou inteira e irremediavelmente surdo!

Sabe-se que ele compôs "Má Vlast" de setembro de 1874 até março de 1879. "Vysehrad", o primeiro dos poemas sinfônicos da série, foi terminado em 18 de novembro de 1874, seguindo-se "O Moldava" entre 20 de novembro e 8 de dezembro do mesmo ano, portanto este e os demais quatro já com o compositor totalmente surdo!

Gênio!


Complexo do Vysehrad, às margens do Rio Moldava, em Praga



Seguir uma descrição detalhada (se fosse ópera diríamos libreto) dessas peças é muito importante para compreendê-las, podendo-se perder muito de sua beleza por mero desconhecimento. Cito em, particular uma passagem do 3º poema sinfônico, Sárka. Ele versa sobre uma lenda tcheca acerca da participação da guerreira Sárka na Guerra das Donzelas. Bem ao final a música começa a diminuir, diminuir... Uma solitária tuba é entreouvida numa nota grave e sonolenta e então um toque de corneta soa. A música recomeça num crescendo, culminando pela seção de sopros gritando rápidas notas picadas em sequência. A solitária tuba representa o ressonar de guerreiros invasores depois de terem sido drogados pelas mulheres da vila, que os seduziram numa orgia comemorativa da pretensa vitória. A corneta de caça soa chamando de volta as mulheres ao cenário. Elas lentamente se esgueiram entre os invasores adormecidos e num frenesi crescente, perpetram a vingança. O pipocar da seção de sopros representa as estocadas com as quais elas matam todos os guerreiros.


Museu Beldrich Smetana, Praga

Bedrich Smetana faleceu em 12-05-1884, segundo atestado original, de demência senil num asilo para loucos em Praga. Este diagnóstico foi contestado pela família e, de fato, pesquisas posteriores detetaram que a doença que o depauperou e matou foi, na verdade, sífilis. Enterrado no Cemitério de Vysehrad, sua tumba se tornou local de peregrinação para visitantes ligados à música.



Procurando apresentações de "O Moldava" na Internet, com fins de inclusão nesse post, achei uma pérola. Uma filmagem amadora (em 2 partes, infelizmente) de uma apresentação gratuita da Second Queensland Youth Orchestra, orquestra australiana baseada em Brisbane e composta apenas por jovens entre 13 e 23 anos!

http://www.youtube.com/watch?v=llOWInx2taE (Moldava 1ª parte - 10:59)
http://www.youtube.com/A1okEZ#p/u/43/ILfVniwordQ (Moldava, final - 1:47)

E aí mais reflexões se abriram, desta vez sobre nossa pobre terrinha... Como maltratamos a cultura e seu estudo no Brasil... Tive oportunidade de conhecer em vídeo institucional uma orquestra de alunos de uma universidade fluminense tida como um projeto exemplar, onde a desafinação só consegue ser tolerada pelos pais e amigos daqueles esforçados alunos...

Para quem quiser ficar mais triste ainda com a comparação da qualidade de nossos estudantes de música erudita com o restante do 1º mundo, sugiro assistir a uma apresentação no YouTube do Moldava integral pela Orquestra Filarmônica da Escola de Música da Northern Illinois University:

http://www.youtube.com/watch?NR=1&v=AHQxs601D-A

Bem, confesso que agora ficará difícil escrever sobre rock progressivo e sua semelhança estrutural com músicas do período clássico, mas convenhamos que há uma infinidade de peças eruditas de qualidade inferior, sendo que estamos acostumados a ser apresentados apenas ao que foi garimpado e escolhido como o creme daquela época.

Além disso, como costumo dizer, não é porque conhecemos Paris que vamos desprezar uma viagenzinha a Gramado...

* Nota do editor: o Autor se refere ao post e seus comentários a seguir http://jorgecarrano.blogspot.com/2011/09/novas-formas-de-autopromocao.html

11 comentários:

Jorge Carrano disse...

Carlos,
Olha o tamanho de minha ignorância. Nunca ouvira falar de Smetana antes de ler seu texto.
Para mim, o filho mais ilustre da República Tcheca, e único que conhecia, era o Franz Kafka.
Aliás, que o autor de "O Processo" sofreu restrições dos tchecos, porque só escreveu em elemão; teve restrições dos alemães, porque era judeu; e dos judeus sofria discriminação porque não era suficientemente ortodoxo, fiel as tradições.
Vida dura para o Kafka.
Praga é uma bela cidade. Ainda escreverei sobre minha visita, em especial sobre a ponte Carlos, uma das mais famosas sobre o rio Moldava, em tcheco Vlatva ( acredite que aprendi até a pronunciar).
Obrigado pelo post. Estou seguro que, como eu, algamas pessoas estarão sendo aprentadas ao Bedrich Smetana, compositor de poemas sinfônicos, em especial os aglutinados em "Má Vlast".
Abraço

Gusmão disse...

Parece que até hoje o Carlos não assimilou a brincadeira com o "heavy metal gótico melódico".
Ainda está dando estocadas sobre o assunto.
Carrano, também eu desconhecia o Smetana, mas não entendo nada deste ramo "poesia sinfônica".
Abraços
Gusmão

Freddy disse...

Gente, não é que não tenha absorvido a brincadeira... Acho que foi injustiça, ora...
E ademais, não se preocupem. Como já disse antes, os debates e divergências são parte integrante do blog, estimulantes. Sem eles ficaria tudo muito insípido (rs rs).
Abraços
Carlos

Helga Maria disse...

Há muito não via, no blog, fotos de lugares bonitos. Praga é lindíssima.
Uma retificação: o nome do rio em checo é Vltava. Trata-se de um afluente do Elba.
Conheço um pouco da obra de Bedřich Smetana, inclusive uma ópera de nome O Beijo, cujo libreto é em checo, que não falo nem leio, mas tem versão em alemão.
Smetana foi contemporâneo a migo de Franz Liszt.
Voces poderiam dar mais espaço a musica erudita e assuntos culturais.
Helga

Jorge Carrano disse...

Tem toda razão, Helga.
O nome do rio está escrito errado em meu comentário inicial.
Falha minha, não do Autor, que o trata pelo nome derivado do alemão:
Moldava.
Você fica convidada a escrever sobre música erudita. Terei imenso prazer em publicar. Ou ficaremos sempre dependendo do Carlos March.
Obrigado pela visita.

Gusmão disse...

Só não podem exagerar na dose do erudito, clássico, elitizado.
Lembro que voces batizaram o blog de Generalidades Especializadas.
Logo, a MPB, o jazz e o rock devem ter espaço também.
Assim como futebol, humor, roteiros turísticos, cinema e teatro.
É a diversidade de assuntos que me faz visitar o blog quase diariamente.
Se o tema é de meu agrado leio, se não, navego e mudo de endereço. Se todo dia o tema fosse o mesmo e não me agradasse, nunca mais voltaria ao blog.
Abraço
Gusmão

Jorge Carrano disse...

Por isso, Gusmão, já tratamos aqui de coisas tão disparis quanto agricultura orgânica, apicultura hindú no século XXIII, fabricação de fósforos, viagens, religião e mulheres, muitas mulheres.
Abraço

Anônimo disse...

Quem????
Bedřich Smetana?
Fala sério.

Freddy disse...

Eu acho que falei da falta de cultura no Brasil. Ou esqueci?

Mas o que importa é saber como vocês colocam o circunflexo ao contrário em cima do r, porque o nome Sárka também tem um em cima do S.

<:o) Carlos

Jorge Carrano disse...

Carlos,
Não sei quanto aos outros, mas eu escrevo no word, onde existe a opção de "símbolos" na barra de ferramentas. Depois colo na janela de comentários.
Pode ser que seja meio lusitano, mas é como eu sei me virar.
Abraço

Freddy disse...

Boa ideia! É que eu editava direto na janela. Aliás, por conta disso volta e meia eu perco comentários por motivos diversos, em geral uma queda momentânea da internet. Com a edição externa, ficará beleza!
Abraço
Carlos