31 de julho de 2015

Superação - minha vivência




Por
Carlos Frederico March
(Freddy)








Lendo os comentários variados do post “Superação” de meu irmão Paulo, o “Riva” deste blog, vieram-me à lembrança vivências pessoais relacionadas com o tema.

O maior exemplo de superação com o qual tive contato direto foi o de minha mãe, que se viu às portas da cegueira com cerca de 39 anos, dois filhos pequenos pra criar (eu com 6 e Paulo com 4). O prognóstico se concretizou com rapidez. Apesar de criteriosamente operada em Campinas, seu destino foi cruel: com 45 anos o último vislumbre de luz se foi.

Ela era uma pessoa dinâmica e independente, chefe de seção no IAPI (mulher chefiando na década de 50 era raro). A expectativa de se tornar inválida quase a fez desistir de viver mas um psiquiatra a lembrou justo dos 2 filhos pequenos e ela, com a ajuda inestimável de nosso pai, decidiu-se por encarar. Sobreviveu, superou a cegueira com garra e determinação. Envolveu todos à sua volta em sua luta, mas isso é outra história.

Sua segunda superação se deu em 1982, quando nosso pai, que para ela era seu “olho virtual”, faleceu e ela ficou simplesmente só. Nossa participação como filhos era comparativamente pequena, ambos tínhamos esposa e crianças. Esse outro drama de superação só terminou em 2008 com seu falecimento aos 89 anos.

Elogiando o empenho de Rodrigo em completar a maratona, feito digno de nosso respeito e admiração, e também sem querer chegar ao exagero de me comparar à minha mãe em sua luta, ocorreu-me relatar minha própria superação, uma vivência de grande impacto em minha vida.  

ANTES

No início de 1968, eu era um sujeito simplório. Gordo, “quatro-olho”, CDF, pacato, assim ia levando a vida. Adiava ao máximo a chegada da maturidade, quando as pessoas em geral falavam de grandes responsabilidades. Preferia estender minha infância ao máximo, com meus balões, cafifas, jogos, conversa fiada... Era como se minha vida fosse durar 100 anos. E eu só tinha 17, que beleza!

Entre as coisas que fazia, uma delas era estudar piano clássico na Escola Fluminense de Música, dirigida por D. Alice Amarante. Fazia-o mais para satisfazer minha mãe que, dentre as metas que se impusera (e aos demais) como motor da família, achava que eu deveria ser concertista.

Isso era um tremendo saco, teria de estudar coisa de 4 horas por dia de piano para manter a forma, mas só estudava 1, mesmo assim obrigado. Contudo, gostava de tocar - e muito! Não gostava era da perspectiva futura. Minha meta profissional era ser engenheiro eletricista e não pianista de carreira, como minha mãe queria e forçava.

Lembro-me do justificado horror de meu professor de piano, Aurélio, quando me via chegar nas aulas com os dedos cortados de cerol ou com as pontas calejadas e verdes do zinabre das cordas de aço dos toscos violões que usávamos para tocar Beatles e Jovem Guarda! Teve um dia que pensei que o pobre homem fosse ter um ataque apoplético, tal sua revolta ao me ver.

Dizem os esotéricos que minha mente influenciou o acidente. Em janeiro daquele ano de 1968 cheguei a fantasiar deixar o dedo numa porta batendo para quebrá-lo e não ter de comparecer a uma audição - aquela coisa terrível a que os alunos são obrigados quando em conservatório. Sempre achei audição um massacre emocional para quem não gostava - e eu não gostava. 

Toquei no malfadado evento a Polonaise Militar de Chopin sob intensa pressão de minha mãe - a quem eu não tinha coragem de confessar minha insatisfação. Em 4 de março fiz a prova final para tirar o diploma técnico de pianista. Dali para a frente, seriam mais 2 anos para obter o diploma integral. Já havia até comprado as partituras a estudar.  Não durou mais que 2 semanas...

O ACIDENTE

Em 16 de março de 1968, por conta de uma estúpida brincadeira entre irmãos, esbarrei numa porta de vidro ao perseguir Riva no quintal de casa e cortei minha mão direita. Foram-se 11 tendões, 2 nervos e uma artéria. Não passei da porta e tinha sangue no meio da cozinha.

Quem me levou de carro até o Hospital Antonio Pedro em nosso Simca Chambord foi Riva, que tinha 15 anos mas sabia dirigir. No banco de trás, meu pai tentava manter um torniquete em meu braço para estancar o sangue e eu murmurava  “Meu piano... Meu piano...”

Quase perdemos nosso cão (Boy), que perseguiu o carro em alta velocidade e não conseguiu achar o caminho de volta. Riva o achou à noite, perambulando sem rumo longe de casa.

Uma operação de 4 horas e meia no Hospital Santa Cruz, realizada pelo Dr. Paulo César Schott tendo como auxiliar o Dr. Sérgio Vianna, reduziu o corte, religando 10 tendões. 45 dias depois, no início de maio, uma segunda operação de 4 horas e meia tentou religar os 2 nervos. A artéria ulnar não foi religada, ou não funcionou o reparo - fiquei sabendo décadas depois.

COMEÇANDO A ENCARAR

Eu ainda não disse, mas era o ano de meu pré-vestibular para engenharia. As aulas no Instituto Gay-Lussac, para onde havia me transferido vindo do Liceu Nilo Peçanha, já haviam começado no início de março. Perdi pouco mais de uma semana de aula com a primeira operação e mais outra com a segunda.

Eu sou, ou era, destro. O resultado das 2 operações em sequência foi que do meio de março até meados de junho fiquei com a mão direita engessada. Quem estudou naquela época sabe qual era o ritmo de um pré-vestibular. Passei a assistir as aulas e fazer toscos rabiscos nas apostilas com a mão esquerda. Por sorte minha, as provas eram tipo teste, de modo que fazer “x” nas respostas era fácil com a mão esquerda. Mas tinha Descritiva...

Algumas aulas me foram copiadas sem que eu pedisse por um anjo em forma de colega, Lúcia Maria Mendes Simões. Ajudou-me bastante a guardar anotações de algumas matérias onde muita coisa era dita em aula, fora das apostilas, e eu não conseguia escrever.

Aos poucos fui aprendendo a ser canhoto. Para estudar em casa, a solução foi bastante simples: passei a escrever em quadro negro com giz, pois era muito mais fácil escrever em quadro que em caderno com a mão esquerda.  

Como já disse acima, o gesso da primeira operação foi tirado para fazer a segunda e só 45 dias depois eu me vi livre dele em definitivo. Entretanto o braço havia ficado confinado desde março, de modo que sua aparência era simplesmente trágica. As carnes ficaram inchadas e as cicatrizes afundadas, entremeadas de dezenas de pontos, formando grotescos sulcos. A munheca estava torta, por ter sido mantida dobrada para facilitar a união dos tendões. Eu tinha a aparência de um aleijado.

Lembro que, sozinho no terraço de minha casa, chorei olhando aquele membro retorcido e disforme.  Era-me difícil acreditar que voltaria ao normal.

SUPERANDO

Então começou minha luta, com o pré-vestibular à toda. Tinha de dormir amarrado numa cadeira porque o braço não podia descair, para que o afluxo de sangue não prejudicasse os pontos internos. Tinha de andar com a mão pra cima, presa na tipóia com o pulso na altura do ombro esquerdo.

Tive de aprender algumas coisas simplórias, como me limpar no banheiro, escovar os dentes, comer, escrever, me vestir, tudo usando apenas a mão esquerda com a direita no alto 24h, engessada.

Claro que todos à minha volta me ajudaram. Por exemplo cortavam carne pra mim nas refeições. No início papai me ajudava a tomar banho com o braço direito pro alto e envolto em plástico, na maioria das vezes em banheira.  Tinha carona pra ir e voltar ao colégio.

Não comentei ainda, mas aquela droga doía! Passei meses tomando analgésicos até que passei a me acostumar com a dor. O ápice foi uma consulta em dentista que, como praxe, mete o motor até onde a gente agüenta. Lá pelas tantas ele parou perplexo, pois eu não reclamava. Então eu expliquei a ele da resistência à dor adquirida e ele respirou aliviado, comentando: “- Achei que o nervo estava morto!”

A escola relevou minhas ausências nas provas de descritiva até julho, quando fiz uma valendo por todo o semestre. A mão direita, já sem o gesso mas essencialmente inerte, apenas ajudava a apoiar esquadro e régua, o resto a mão esquerda tinha de fazer sozinha.

A fisioterapia intensiva que passei a fazer numa clínica mostrou que a sensibilidade da mão avançaria 1cm por mês a partir do corte no punho e  passei a contar o tempo que restava para chegar à ponta dos dedos, mas houve problemas. Apenas um dos nervos regenerou e resultou em movimentos reduzidos.

Para resumir a progressão, consegui pegar num lápis/caneta mais ou menos em setembro, pois a mão estava absolutamente sem força ainda. Minhas primeiras notas ao piano se deram no final de outubro, com grande esforço pela fraqueza, alguma dor e pela dificuldade provocada pelo nervo que não regenerou.

A essa altura eu já me transformara em pequeno gênio. Aprendera a fazer contas de cabeça, minha memória desenvolveu de maneira extraordinária. Antes que chegasse ao final das toscas anotações canhotas, já sabia as respostas dos cálculos. Aprendi a estimar grandezas e resolvia questões de física e de geometria muitas vezes sem usar a progressão das fórmulas, apenas por intuição.

Quando chegou o vestibular, em princípio de janeiro/69, eu já conseguia escrever novamente com a  mão direita, meio fraco é verdade, mas não mais precisava ser canhoto. Só a prova de Descritiva do vestibular é que foi feita com a esquerda, usando a direita só para segurar régua, esquadro e compasso. Eu ainda confiava mais na esquerda.

ACOSTUMANDO

Passei no vestibular. Aos poucos a mão foi melhorando e fui me acostumando com as limitações. Na PUC só tive alguma dificuldade no curso de desenho a mão livre, como era cobrada a Descritiva no 1º período do ciclo básico.

Meus pais sofreram mais que eu, pois para eles o médico (a maioria deles insensível quanto aos sentimentos do próximo) dizia que eu tinha poucas chances de voltar a ter movimentos e sensibilidade. Para mim todos diziam que a cura dependia de minha persistência nos exercícios fisioterápicos.

Sem muita maldade nem desconfianças, acreditei. Passei a viver 24 horas alongando os tendões da mão direita com a esquerda. Conversando, assistindo aula, vendo TV, ouvindo som, o tempo todo eu ficava alongando, alongando... Virou uma segunda natureza.

Em relação aos tendões, essa persistência deu resultado. A parte neurológica dependeu de sorte e dos exercícios de choque que forçavam os nervos a reagir. Repetindo, um dos dois não correspondeu e é fonte de problemas até hoje. Não consigo unir os dedos com a mão espalmada, há uma área insensível no dorso e perdi o discernimento para coisas pequenas.

Por exemplo, às vezes é um tormento bater foto. A ponta do dedo indicador não acha o botão de disparo e não raro perco o instantâneo por causa disso. Preciso olhar para o botão, colocar o dedo em cima e então voltar ao visor para compor a foto. Às vezes ele escapa de novo e perco mais tempo. As máquinas em sua maioria esmagadora prevêem o uso do indicador direito para clicar. Os smartphones vieram para resolver isso (rs rs).

Voltei a tocar piano! Contudo, a falta do tal movimento de junção de dedos me impede de tocar acordes complexos. Além disso, peças muito velozes e cansativas me causam cãibra na mão, porque a perda de irrigação sanguínea pela artéria que não foi ligada se faz sentir.

Ainda toco algumas peças clássicas, remanescentes do tempo em que eu estudava a sério. Faço-o com algumas adaptações de partitura, seguindo recomendações de um jovem professor de piano que me deu aulas durante poucos meses em 1982:
“- Jamais deixe de tocar por causa das limitações. Adapte os acordes, simplifique trechos e cadências, invente, mas toque!”

É como faço. No mais, a maioria de meu repertório atual é de peças populares que adapto às limitações existentes. Voltei a gostar do piano, sem a pressão de ter de ser concertista.

Violão é mais fácil, pois os acordes são feitos com a esquerda. Mesmo assim, não consigo segurar uma palheta de guitarra por longo tempo, ela me foge dos dedos sem que eu perceba. Passei então a privilegiar cordas de nylon, praticando o chamado violão dedilhado. Pra mim é mais fácil.

Enfim, sou canhoto para um monte de coisas hoje em dia, como por exemplo para pegar pequenos objetos em caixas ou bolsos, escovar dentes, limpar-me. Dependendo da tarefa que estiver executando, um observador ocasional pode decidir que eu sou canhoto.

CONCLUINDO

Confesso que passei por uma fase de revolta, lá mesmo em 1968. Achei que minha vida trilharia um caminho de exceção, diferente dos demais mortais, perfeitas e saudáveis criaturas.

O maior trauma a superar, aquilo que mexeu lá dentro de mim,  foi que meu braço, àquela época ainda bastante deformado (melhorou com o tempo), aumentou a timidez que eu já tinha frente ao sexo oposto. Pegou-me em plena juventude. Não bastasse achar-me gordo e desajeitado, usar óculos (o que na época ainda era esquisito), ainda tinha aquelas imensas cicatrizes a piorar minha auto-estima.

Então - isso percebi décadas à frente - passei a usar, intuitivamente, a teoria de que devemos aproveitar as crises como oportunidades de melhoria, encarando os novos desafios com as armas reduzidas com que passamos repentinamente a dispor. Tinha acabado de descobrir que o dia de hoje não garante o de amanhã, havia que fazer algo.

Mudei o comportamento, que era de pasmaceira frente ao cotidiano para uma maior atenção ao que realmente me importava. Minha mãe, coitada, declarou que “havia perdido um filho”. Sim, de certa maneira parei de estar ao lado dela no dia-a-dia, como era costumeiro de minha parte, para então começar a cuidar de meus próprios interesses. Minha real adolescência começara! Tardou mas veio.

O tempo, afinal, se encarregou de me demonstrar que mazelas e limitações  não fizeram grande diferença no que realmente importa para sermos felizes. Trabalhei, diverti-me, tive altos e baixos como todo mundo, com grandes e pequenas superações de menor monta no cotidiano.

Casei-me e assim estou há 38 anos. Nem minha esposa nem minhas filhas jamais fizeram comentários acerca da aparência de meu braço direito. 

Talvez porque haja outras coisas mais importantes a considerar do que cicatrizes num braço.

Um de meus pianos eletrônicos - Yamaha DGX630


Nota do editor: o post "Superação" citado no primeiro parágrafo é encontrável em 




4 comentários:

Jorge Carrano disse...

Parabéns, Freddy.
Você precisou de suporte profissional? Fez análise?

Freddy disse...

Boa pergunta essa.
Por conta desse acidente (1968), não.
Comecei a precisar de análise quando meu pai faleceu (1982) e eu não estava conseguindo perceber como lidar com nossa mãe cega, que ficou emocionalmente só.

Seu comentário foi interessante, pois suscitou uma reflexão voltando ao passado. Fiz psicoterapia com 3 profissionais diferentes ao longo dos anos, em períodos espaçados, mas não lembro de ter abordado o acidente como tema a ser dissecado!

Veja bem: isso não significa que eu tenha relegado as consequências do acidente ao segundo plano, muito pelo contrário. Estão presentes no meu cotidiano. O que quero dizer é que o assunto está relativamente bem assentado na mente, sem a necessidade de psicoterapia para resolver questões pendentes.

Ana Maria disse...

Parabéns. Sobrevivem os mais adaptáveis da espécie. Hoje em dia o foco está na resiliência.

Riva disse...

Do sofrimento emergiram os espíritos mais fortes. As personalidades mais sólidas estão marcadas com cicatrizes.

(khalil gibran)