8 de setembro de 2011

Impunidade - II

Prometi no post anterior relatar um caso verídico para ilustrar a dificuldade de reinserção de ex-sentenciados no convívio social.

Além das barreiras conhecidas, que impedem a chamada ressocialização (é possível a regeneração de estuprador, de pedófilo?)* existem outros obstáculos que não são muito divulgados, senão em alguns roteiros cinematográficos.

O caso que relatarei parece tirado de enredo de filme americano, mas é verdadeiro e ocorrido no Brasil, em São Paulo.
Loja de um supermercado

Eu era Gerente Administrativo de uma cadeia de supermercados, chamada Superbom, anos depois adquirida pelo Abílio Diniz, e incorporada à rede Pão de Açúcar. A Superbom tinha muitas lojas em São Paulo (capital e interior), no Paraná e em Minas Greais. Nenhuma no Rio de Janeiro.

Dita rede – Superbom – patrocinava um programa esportivo na rádio Gazeta, em São Paulo.

Certa feita alguns executivos, com suas esposas, foram convidados pelo comentarista esportivo para assistir uma partida de basquete da equipe nacional juvenil, na qual jogava o filho dele (juntamente com o Oscar e o Marcel, depois consagrados na equipe principal). Jogo no Ginásio do Ibirapuera. Depois jantaríamos (os casais) numa churrascaria.

Não ficamos íntimos – eu e o citado comentarista esportivo – mas acabamos por estabelecer um vínculo. Ele era natural do Maranhão.

Certo dia a secretária me informa que estava na portaria, para falar comigo, alguém com um bilhete do citado comentarista.

O bilhete dizia, mais ou menos, em síntese: “Carrano, Veja o que pode fazer pelo José Ribamar, ele te explica a situação. Ele precisa de uma chance. Depois nos falamos. Obrigado”.

Pedi ao José, abro um parêntesis para explicar que não lembro o nome verdadeiro do personagem, até poderia ser José mesmo, mas escolhi intencionalmente José Ribamar, porque sendo ele natural do Maranhão, por associação de idéias me parece bem adequado. Fecha parêntesis. Dizia que pedi ao José para me contar a história. Ele, a meia voz, contou que era ex-detento, que cumpriu 6 anos de cadeia por assalto a mão armada. Indaguei se ele matou ou feriu alguém, e ele com segurança respondeu que foi condenado por roubo e não por latrocínio. Especulei mais e fiquei sabendo que estava em liberdade há cerca de um mês, morando de favor, na casa de um conterrâneo e que precisava trabalhar para poder ajudar nas despesas da casa e acertar a vida dele. Este amigo dele, que o acolheu em casa era, por sua vez, amigo do comentarista esportivo que de quem falei  no início da história e, por intermédio do amigo o José Ribamar chegou ao radialista e este o encaminhou para mim.

O cara tinha cara boa, com perdão da repetição do cara, cara boa. Explico que não me filio a corrente lombrosiana. Só para constar.

Fiquei animado em dar uma oportunidade ao cara. O giro (turnover) em supermercado é alto e sempre surgem vagas para trabalho braçal. O José era alto e forte, cor típica dos maranhenses de verdade (cor da Alcione).

Todavia, arriscar sozinho era uma tarefa que não queria assumir. Fui ao Diretor Geral – Gelsomino – mostrei o bilhete (ele conhecia, óbvio, o radialista) e resumi a história. O Gelsomino topou sem pestanejar e me sugeriu: conversa também com o Sophia. Eduardo Sophia era o responsável pela segurança patrimonial da empresa (ex-Tenente-Coronel reformado, da Polícia Militar de São Paulo).

Contei toda a história para o chefe da segurança, apenas para ele ficar informado, pois a decisão estava tomada. Afinal, era impossível prever o que o José poderia aprontar.

Depósito,
 de um supermercado

Para atalhar a história, o José foi contratado como ajudante no Depósito da loja localizada na Água Branca, perto do Parque Antártica (estádio do Palmeiras). Trabalho físico de carga e descarga de mercadorias.

Tudo caminhava bem, ele observado discretamente pela segurança interna do Sophia e sem registro de deslizes. Era pontual e assíduo. E trabalhava pesado.

Quatro meses depois vem ao escritório central da rede, onde eu ficava, e comunica que pedira demissão pela manhã.

Que houve, indaguei, arranjou emprego melhor? “Não doutor, aconteceu o que eu temia, contou nervosamente – “fui procurado por antigo companheiro, lá na loja, me propondo um serviço”. Entendo, disse eu, querem você de volta à criminalidade. - “Pois é, e a proposta é começar pelo Supermercado”. Digo que o faturamento daquela loja (acho que ainda existe, com a bandeira Pão de Açúcar) era um dos maiores da rede. Era um hipermercado completo. E dai, perguntei, o que você está planejando? - “Bem, pretendo me mandar para o Maranhão e ver o que consigo por lá. Eles não vão me dar sossego aqui. Como eu disse nunca matei ninguém, mas eles são barra pesada.”

Observem que mesmo nos raríssimos casos em que há empenho do meliante em sua recuperaração, fatores outros, incontroláveis, tornam a tarefa quase impossível. Denunciar os antigos companheiros de crime estava descartado. -  “Quem me dará garantia de vida, doutor?”

Desconheço o que aconteceu com o José Ribamar, pois nunca mais tive notícias dele. Pode ter sucumbido ao assédio e voltado ao crime? Pode ter desistido de lutar contra o ingrato sistema social? Ou encontrou no Maranhão o ambiente propício pra sua regeneração?
Quero encerrar este assunto do sistema prisional e da recuperação de marginais para o convívio social com dois casos notórios que ocuparam as manchetes dos jornais. Daí o asterisco no primeiro parágrafo.

Lembram do “bandido da luz vermelha”? Condenado depois de vários assassinatos e estupros, cumpriu pena de 30 ANOS, isso mesmo, cumpriu os 30 ANOS a que estava condenado. Três meses após sua libertação foi morto a tiros de espingarda pelo vizinho cuja mulher fora vítima de tentativa de estupro pelo marginal irrecuperável, o famoso “bandido da luz vermelha”.

De que valeram os 30 anos de cadeia? Quanto nos custou? Se era doente mental, não poderia ter sido posto em liberdade. Que sistema carcerário é este?

O outro caso, menos rumoroso, aconteceu há pouco tempo. Um pedófilo, preso pela segunda vez (já cumprira parte da pena e estava em liberdade condicional), pediu para ser mantido encarcerado, como única saída para seu caso. Ele admitia uma atração irresistível para pedofilia e achava difícil se controlar sem ajuda. Só estando preso.

Notas do autor: A rede Superbom pertencia ao Grupo Matarazzo. As fotos publicadas não se referem a rede citada e foram colhidas na internet apenas para ilustrar o texto.

4 comentários:

Gusmão disse...

Realmente ja assisti filme no qual o personagem queria se regenerar e antigos companaheiros de marginalidade ficavam atras dele para novos assaltos. E era, também, eterno suspeito da Polícia, que não confiava em ex-presidiário.
Aproveito para perguntar porque não se fala mais de futebol. Logo agora que meu Botafogo está alta, não se fala mais sobre o assunto.
Gusmão

Jorge Carrano disse...

"Suspeitos de sempre" é fala do Chefe de Polícia, em Casablanca. Lembra?
Abraço

Freddy disse...

Carrano, quando trabalhava na Embratel iniciaram um programa de inserção de menores carentes no mercado de trabalho. Chamava-se "Programa Bom Menino". Cada seção recebia um, que passava um tempo aprendendo a trabalhar. Um deles foi identificado como o responsável pelo sumiço de alguns itens pessoais dos empregados de minha seção, onde estava lotado. Pediu então desligamento do programa, confessando estar sendo obrigado a mostrar diariamente na favela onde morava algum objeto roubado, sob pena de ser surrado e até morrer, se não o fizesse.
É a realidade do submundo.

Jorge Carrano disse...

Pois é, Carlos, é com tristeza e não júbilo, que vejo você dar um testemunho de que é muito difícil o meliante se regenerar, dar a volta por cima e e ser reintegrado no melhor convívio social.
Abraço