6 de abril de 2010

William Longhall

Ele foi batizado antes de nascer. Eu e meu filho Ricardo, caminhando no calçadão da praia, já havíamos escolhido o nome há uns dois meses, aproximadamente. Este período antecedeu minha mudança, para uma casa com bom quintal. Fora de Niterói. Assim, quando o levei para casa, com 45 dias de vida, ele já tinha um nome. E sobrenome.

A escolha foi fácil, a partir do momento em que defini que deveria ser imponente, como ele deveria ser. O porte robusto e nobre, assim como seu temperamento foram idealizados. Este perfil permeou a escolha do nome, que deveria ter origem na nobreza, mas que permitisse aos mais chegados um tratamento mais simples, sem a pompa, sem cerimônia, um apelido enfim.

Poderia ter sido Robert, que daria um Bob, mas era muito comum nos de sua espécie. O nome William aflorou logo. Mas somente os íntimos poderiam tratá-lo pelo diminutivo afetivo: Bill.

O real superou, em tudo, o imaginado. Bill era, dentre os de sua raça, de porte avantajado. Tornou-se um adulto, aos 7 meses, forte, imponente, impondo respeito pela simples presença física. Orelhas sempre rígidas e apontadas para o céu. Nunca caiam para os lados; antes pelo contrário se cruzavam, eventualmente, inclinando-se, eretas, para dentro, sobretudo quando ficava mais atento ao que eu dizia ou fazia. Era da espécie capa preta ou manto negro. Um pastor lindo. Quando saíamos de casa, inspirava nas pessoas dois sentimentos: de admiração e de temor. Melhor dizendo, respeito.

Seu olhar atento, fixado em mim, em meus gestos, permanentemente, passava a idéia de que ele estava sempre preparado para me defender de qualquer ameaça, real ou suspeita.

Não se conformava que eu pudesse estar fora do alcance de sua vista. Seu lugar, acho que ele achava, era sempre perto de mim. Toda manhã colocava as patas dianteiras no peitoril da janela de meu quarto, e ficava espreitando. E durante meu café matinal, fazia o mesmo através da janela da copa. A menos que a porta estivesse aberta, pois neste caso se esparramava na soleira, olhando para dentro, aguardando sua refeição diária. O que acontecia logo após o meu dejejum.

Nunca foi adestrado, pelo menos não segundo os padrões usuais. Nunca teve um treinador. Nunca lhe ensinei coisa alguma planejada. As regras de convivência foram sendo estabelecidas naturalmente, a medida que as situações apareciam. Foi assim quando, ainda um filhote, com não mais do que 2 meses, ou seja, 15 dias em minha casa, rosnou e avançou na minha mão, quando inadvertidamente peguei seu prato de comida apenas para mudar de lugar. Dei-lhe um piparote no focinho, e ele logo aprendeu que eu tinha o comando ali. E nunca mais, nunca mais mesmo, rosnou para mim. Mai tarde, até mesmo osso eu pegava em sua boca. E devolvia, claro, pois era preciso que ele soubesse que eu jamais o trairia. Que podia confiar em mim.

Quando tentou entrar em casa, pela porta da copa/cozinha, foi advertido com um sonoro não, em tom baixo mas enérgico. E ele jamais entrou em casa, nem por aquela, nem outra qualquer. Ele foi aprendendo assim, com reprimenda, se a ação era indesejada, e com estímulo se era um procedimento apreciado. Nada formal, tudo naturalmente, como se faz com uma criança.

Foi mais fácil ensiná-lo a não pegar os chinelos que ficavam no primeiro degrau de uma estante de ferro, na varanda, onde mantínhamos vasos de plantas, do que aos meus filhos a darem laço nos cordões dos sapatos.

Comportava-se como criança ao menor sinal de que sairíamos. A pé, ou de automóvel. Os indicios aprendeu rapidamente: pegar a coleira e a guia era muito claro. Ou abrir a porta traseira do carro.

Tínhamos uma enorme confiança um no outro. Estou absolutamente seguro que me defenderia até a morte. Quando eu “conversava” com ele, era tal a atenção que dava as minhas palavras, que parecia entender cada uma delas.

Um dia precisamos nos separar. Eu precisei. Não sei como cheguei em casa dirigindo, pois percorri os 8 quilômetros desde o lugar onde o deixei, com os olhos marejados. E ainda hoje, relembrar daquele dia e daquele momento, me deixa triste e deprimido. O mais emocionante é que quando tirei dele a coleira, pois queria leva-la comigo como uma lembrança, ele parecia ter entendido que era uma despedida. Seu olhar denunciava isto. Como esquecer.

Eu não precisava de um amigo, pois tinha e tenho 2 filhos, mas precisava de um companheiro, no isolamento de São José de Imbassaí. E tive o melhor que qualquer um pode ter tido em qualquer tempo ou lugar.

Como disse certa feita o Paulo Alberto Monteiro de Barros, “viver é acumular perdas”.



Nota do autor: esta é uma história real. Se fosse uma peça ficcional, reconheço, seria muito pobre. Pouco criativa e nada original. Parecida com muitas outras. Mas é a história de minha relação com meu cão. De ninguém mais Por isso, para mim, é forte e inesquecível.

2 comentários:

gustavo disse...

Estou vasculhando a internet. Estou à procura de tempo. Na verdade tenho prazo para apresentar uma petição e não estou com a menor vontade de redigi-la, mas o farei. Me deparei com seu texto. Como é curiosa a vida. Ela se repete. Uma história simples que deve ter sido vivida por muitos. Mas como é legal ver um desconhecido narrando uma história que parece ser sua.
Abraços gente boa.

RC disse...

Muitos repetem que o cão é o melhor amigo do homem, sem se dar conta da real extensão destas palavras. A relação entre o cão e seu "dono" é, em geral, melhor do que a relação entre os homens ou entre os cães. Ela tem o potencial de extrair do outro o seu melhor.
Como narrado pelo autor, a comunicação é completa, a compreensão plena e a amizade fortíssima. Talvez não exista, na natureza, uma simbiose tão forte e significativa.
Qualquer texto em homenagem a um cão, é uma homenagem ao que há de melhor no homem. Quando reconhecemos sua dedicação e fidelidade nos tornamos pessoas melhores.
Eu conheci o Bill, e não vi no texto nenhum exagero. Um cachorro lindo, majestoso e, como todo cão que é tratado com respeito e amor, certamente, um grande amigo.