25 de outubro de 2019

Minha tia Valentina

Por
Esther Lúcio Bittencourt


Esther Maria Duarte Lucio Bittencourt, poeta, jornalista, violinista, membro da Academia Caxambuense de Letras, vários livros publicados.


Não conheço em meus quase 78 anos uma pessoa tão erudita como tia Valente. Pequena, magra, rosto redondo de pouca fala. Contam que após a gripe espanhola ficou surda. Por conveniência, afirmo eu. Nossas conversas se davam em voz baixa.

Tia Valente ficou solteira, morava na casa de minha avó materna. Tinha no quarto sua máquina de costura. Já que não ouvia, para falar com ela precisava ser aos berros. Não sei o que costurava, mas o fazia.

Minha avó Martha e tia Hulda eu sabíamos que seus colarinhos de camisa masculina eram famosos. Mas não era na casa delas que tia Valente morava. Era na casa da vovó América. Ao lado do quarto dela morava tia Beatriz, que também ficou solteira.

Eram almas puras, delicadas. Quando passava pelo quarto de tia Valente, pelo corredor de fora onde havia muitas plantas, sempre encontrava uma romã para mim. Uma pintura sobre o parapeito da janela, vermelha, madura, com a casca entreaberta. Hoje me pergunto como ela me abastecia do que mais gostava, mesmo fora do tempo?

Gostava de conversar com ela e muito aprendi. Quando vovó morreu ela e tia Beatriz, que chamávamos Beata, tentaram substituir vovó. Cantavam, liam, me davam comida na boca contando histórias arrepiantes. Tia Beata falava sempre do menino Jesus. Já tia Valente, contava a história de Clarinha cuja madrasta colocara no porão da casa para apodrecer. Tinha outra, a de uma menina que foi enterrada viva no quintal da casa pela madrasta. O pai dela chegava de viagem e sempre ouvia a música que a menina, quando viva, cantava e uma touceira de capim amarelado estava enorme. Ele mandava limpar e o capim crescia. Até que mandou cavar no local e encontrou sua filha viva. Separou da madrasta, claro. Com Tia Valente aprendi a apreciar poesia e canto. Ela tocava violino, piano e porfiava em me alfabetizar nas partituras. Mas tia Débora, sempre atenta, proibiu. Precisava estudar coisas do colégio.

Bem, o tempo passou. Cresci, casei, descasei. Tia Valente morava então com minha mãe. Entre a Reitoria e o JB meu carro corria até lá. Perdia o almoço mas tia Valente me ensinava japonês, contava histórias que hoje leio nas Sendas de Oku, de Matsuo Bashô, me ensinou a gostar de haicais, das gravuras japonesas...

Um dia amanheceu morta. A mulher que rompeu todas as convenções de seu tempo, século dezenove, se bastava e só ouvia o que desejava.

Um detalhe: não gostava de Venina Pantoja, agregada da minha avó porque a considerava namoradeira demais. Eu, de minha parte, amava Venina e sua coleção de réstias de cebola e alho que enfeitavam seu quarto. Ela acreditava em vampiros.


Nota do blogueiro:
Como contraponto, nesta comovente e rica história, a autora escolheu a estória da figueira, encontrável em (clicar na imagem)



6 comentários:

Jorge Carrano disse...


Conheci Esther há algum tempo. Não iria precisar para não denunciar a sua idade. Como para ela tanto se lhe dá, haja vista que inicia o texto declinando seus 78 anos, posso situar que foi na passagem da década de 50 para a de 60, do século passado.

Éramos jovens e tínhamos “sonhos que não deixamos morrer sem nem mesmo tentar”.

Ela realizou muitos. Perdemo-nos em alguma esquina de nossas trajetórias, e graças à rede mundial de computadores nos reencontramos, agora de forma virtual.

Ela vive em Caxambu-MG, onde continua escrevendo, tocando violino, enriquecendo a vida.

Parafraseando Francisco Otaviano, diria que ela não passou pela vida em branca nuvem, e tampouco em plácido repouso adormeceu, porque certamente não passou apenas pela vida, ela a viveu, vive e viverá de igual modo.

Obrigado, Esther.

Jorge Carrano disse...


Parvo assumido e ignorante genérico, pensei haver equívoco de digitação e impliquei com tia HULDA.

Imaginei que seria tia HILDA.

Consultada a autora ela informou estar correto HULDA porque o nome é de origem russa, como sua família.

Mística disse...

Esse postagem piorou minha bipolaridade. Estava encantada com a tia Valente e as outras irmãs (até a agregada namoradeira), quando a autora nós leva para uma madrasta perversa e sua enteada de cabelos de ouro.
Parabéns a Esther pelo texto é ao administrador do blog pela efeméride.

Jorge Carrano disse...



Precisamos de mais místicos aqui no blog, minha cara Mística.

O espaço é dominado por ortodoxos, cartesianos, ateus, agnósticos e assemelhados.

Fique com a gente, com ou sem nickname.

Riva disse...

Tivemos já aqui alguns posts relacionados a misticismo ....

Maria Cecília disse...

Que belo texto. Parabéns a autora pela envolvente narrativa.