Carlos Frederico Marques Barroso March
Aposentado e sem atividades formais em meu cotidiano, matriculei-me no início de 2009 no curso superior de Licenciatura em Música, ministrado na Universidade Cândido Mendes, em Nova Friburgo. Tê-lo abandonado com apenas um mês de aulas não vem ao caso no momento. Uma das matérias era Português Instrumental e um texto ("Ler o Mundo", do Affonso Romano de Sant'Anna, O Globo, 12/11/2000) nos foi apresentado para análise e debate. Ele suscitou reflexões sobre o assunto "analfabetismo" e registro minhas impressões a seguir.
1 que ou aquele que desconhece o alfabeto; que ou aquele que não sabe ler nem escrever
2 que ou aquele que não tem instrução primária
3 Derivação: por extensão de sentido.
que ou o que é muito ignorante, bronco, de raciocínio difícil
4 Derivação: por extensão de sentido. Regionalismo: Brasil.que ou aquele que desconhece ou conhece muito mal determinado assunto ou matéria
Ex.: ser (um) analfabeto em política, em matemática
Não pude deixar de me lembrar de minha falecida avó Carolina. Portuguesa "da aldeia", como se definia querendo significar ter sido criada no ambiente rural português na virada do século XIX para o XX, não aprendeu a ler. Na aldeia só se trabalhava. Alguma coisa como, por exemplo, escrever o seu próprio nome naquela caligrafia incerta ela ainda conseguia, já que ao longo dos anos conseguiu absorver algo como autodidata, mas era pouco mais que analfabeta - no sentido formal da palavra.
No entanto, como a velhinha era culta na decifração das emoções, usando a leitura da tal da linguagem corporal ! Como nos valemos vezes sem conta de sua imensa habilidade para dirimir rusgas, que eram muitas por conta de condições particulares de nossa conturbada família... De nada valia nosso vasto conhecimento da língua portuguesa - incluindo meus pais, eu e meu irmão, mais vovô - frente aos conhecimentos que minha saudosa avó, dita analfabeta, tinha das relações humanas!
Schloss Neuschwanstein |
Por conta dessas lembranças e com a mente viajando agora pelo meu passado, nos meus vinte e poucos anos tive ocasião de me pilhar eu mesmo analfabeto. Foi quando passei sete meses estudando na Alemanha, nos idos de 1977. Eu sabia algo de inglês, que era a língua a ser usada no treinamento, e rudimentos de francês. No entanto, ao passear pelas ruas de Munique e arredores, ser confrontado com aquele monte de letras, aqueles "palavrões" intermináveis, me dava vislumbres do que devia pensar e sentir um sujeito que não aprendeu a ler.
Não, eu não estava sendo pleno e justo em minha avaliação, dado que ao menos conseguia soletrar os "palavrões" e, com a ajuda de um dicionário e de algumas poucas dicas gramaticais, saber do que se tratava o assunto, nem que por alto. A gente (eu e minha esposa Mary) ao menos conseguia até fazer compras de gêneros com certa desenvoltura e aprendemos a ouvir os preços. Ao menos os preços !
Engraçado: porque a quase totalidade dos analfabetos sabe contar dinheiro? Continuemos...
ideogramas japoneses |
Não, isso não é nada perto da visão aterrorizante dos ideogramas orientais! Isso sim é ser analfabeto. De pai e mãe, como se costuma dizer por aí. Nunca tive muita vontade de ir à China, ou ao Japão, Coréia e vizinhos, só de medo de me pilhar incapaz de sequer vislumbrar o que se trata cada "monte de pauzinhos". Anafalbetismo: teoria e prática!
Bem vindo ao clube, meu caro Carlos Frederico! Você é, portanto, também um analfabeto!
tríade |
Isso nos traz à música, que aliás era o tema em estudo na tal aula da Universidade. Não são muitos aqueles que conseguem ler um texto musical, melhor dizendo uma pauta. O que nos leva mais uma vez à inadequação da formalidade dos conceitos, dado que muitos autores e intérpretes consagrados - pelo menos na música popular - fizeram fama sem nem saber do que se trata uma clave de sol.
Exagero meu, talvez, mas é fato sabido que Tim Maia não sabia ler música. Acrescento aí os Beatles no início de carreira, o que trouxe problemas diversos a seu empresário para registrar e salvar os direitos autorais das músicas que tomavam de assalto o mundo. Citarei ainda o ABBA, famosa banda pop sueca vendedora de 360 milhões de discos entre singles, LPs e CDs. Alguns devem conhecer o musical "Mamma Mia!", ainda em cartaz em diversos países.
Ele é baseado em algumas das músicas do ABBA, ligeiramente modificadas e encadeadas dando forma a um enredo simples mas plausível. Pois saibam que o primeiro grande passo dos realizadores deste musical foi resgatar os detalhes finos de cada partitura (essenciais para ensaios dos atores cantores) através da audição compasso a compasso de toda a discografia, dado que nada estava registrado em pautas!
Componentes originais do ABBA, em foto de 2008 numa divulgação do musical, da esquerda para a direita:1º Benny; 5ª Agnetha; 6ª Frida; 12º Björn |
Vai daí, concluo que o rótulo de analfabeto pode ser extremamente injusto se aplicado indiscriminadamente e com intenção pejorativa, pois depende do contexto. Todos nós o somos, em algum aspecto de nossas vidas.