Por
Carlos Frederico March
(Freddy)
Lendo
os comentários variados do post “Superação” de meu irmão Paulo, o “Riva” deste
blog, vieram-me à lembrança vivências pessoais relacionadas com o tema.
O
maior exemplo de superação com o qual tive contato direto foi o de minha mãe,
que se viu às portas da cegueira com cerca de 39 anos, dois filhos pequenos pra
criar (eu com 6 e Paulo com 4). O prognóstico se concretizou com rapidez. Apesar
de criteriosamente operada em Campinas, seu destino foi cruel: com 45 anos o
último vislumbre de luz se foi.
Ela
era uma pessoa dinâmica e independente, chefe de seção no IAPI (mulher
chefiando na década de 50 era raro). A expectativa de se tornar inválida quase
a fez desistir de viver mas um psiquiatra a lembrou justo dos 2 filhos pequenos
e ela, com a ajuda inestimável de nosso pai, decidiu-se por encarar.
Sobreviveu, superou a cegueira com garra e determinação. Envolveu todos à sua
volta em sua luta, mas isso é outra história.
Sua
segunda superação se deu em 1982, quando nosso pai, que para ela era seu “olho
virtual”, faleceu e ela ficou simplesmente só. Nossa participação como filhos era
comparativamente pequena, ambos tínhamos esposa e crianças. Esse outro drama de
superação só terminou em 2008 com seu falecimento aos 89 anos.
Elogiando
o empenho de Rodrigo em completar a maratona, feito digno de nosso respeito e
admiração, e também sem querer chegar ao exagero de me comparar à minha mãe em
sua luta, ocorreu-me relatar minha própria superação, uma vivência de grande
impacto em minha vida.
ANTES
No
início de 1968, eu era um sujeito simplório. Gordo, “quatro-olho”, CDF, pacato,
assim ia levando a vida. Adiava ao máximo a chegada da maturidade, quando as
pessoas em geral falavam de grandes responsabilidades. Preferia estender minha
infância ao máximo, com meus balões, cafifas, jogos, conversa fiada... Era como
se minha vida fosse durar 100 anos. E eu só tinha 17, que beleza!
Entre
as coisas que fazia, uma delas era estudar piano clássico na Escola Fluminense
de Música, dirigida por D. Alice Amarante. Fazia-o mais para satisfazer minha
mãe que, dentre as metas que se impusera (e aos demais) como motor da família,
achava que eu deveria ser concertista.
Isso
era um tremendo saco, teria de estudar coisa de 4 horas por dia de piano para
manter a forma, mas só estudava 1, mesmo assim obrigado. Contudo, gostava de
tocar - e muito! Não gostava era da perspectiva futura. Minha meta profissional
era ser engenheiro eletricista e não pianista de carreira, como minha mãe
queria e forçava.
Lembro-me
do justificado horror de meu professor de piano, Aurélio, quando me via chegar
nas aulas com os dedos cortados de cerol ou com as pontas calejadas e verdes do
zinabre das cordas de aço dos toscos violões que usávamos para tocar Beatles e
Jovem Guarda! Teve um dia que pensei que o pobre homem fosse ter um ataque
apoplético, tal sua revolta ao me ver.
Dizem
os esotéricos que minha mente influenciou o acidente. Em janeiro daquele ano de
1968 cheguei a fantasiar deixar o dedo numa porta batendo para quebrá-lo e não
ter de comparecer a uma audição - aquela coisa terrível a que os alunos são
obrigados quando em conservatório. Sempre achei audição um massacre emocional
para quem não gostava - e eu não gostava.
Toquei
no malfadado evento a Polonaise Militar de Chopin sob intensa pressão de minha
mãe - a quem eu não tinha coragem de confessar minha insatisfação. Em 4 de
março fiz a prova final para tirar o diploma técnico de pianista. Dali para a
frente, seriam mais 2 anos para obter o diploma integral. Já havia até comprado
as partituras a estudar. Não durou mais que
2 semanas...
O
ACIDENTE
Em
16 de março de 1968, por conta de uma estúpida brincadeira entre irmãos,
esbarrei numa porta de vidro ao perseguir Riva no quintal de casa e cortei
minha mão direita. Foram-se 11 tendões, 2 nervos e uma artéria. Não passei da
porta e tinha sangue no meio da cozinha.
Quem
me levou de carro até o Hospital Antonio Pedro em nosso Simca Chambord foi
Riva, que tinha 15 anos mas sabia dirigir. No banco de trás, meu pai tentava
manter um torniquete em meu braço para estancar o sangue e eu murmurava “Meu piano... Meu piano...”
Quase
perdemos nosso cão (Boy), que perseguiu o carro em alta velocidade e não
conseguiu achar o caminho de volta. Riva o achou à noite, perambulando sem rumo
longe de casa.
Uma
operação de 4 horas e meia no Hospital Santa Cruz, realizada pelo Dr. Paulo
César Schott tendo como auxiliar o Dr. Sérgio Vianna, reduziu o corte,
religando 10 tendões. 45 dias depois, no início de maio, uma segunda operação
de 4 horas e meia tentou religar os 2 nervos. A artéria ulnar não foi religada,
ou não funcionou o reparo - fiquei sabendo décadas depois.
COMEÇANDO
A ENCARAR
Eu
ainda não disse, mas era o ano de meu pré-vestibular para engenharia. As aulas
no Instituto Gay-Lussac, para onde havia me transferido vindo do Liceu Nilo
Peçanha, já haviam começado no início de março. Perdi pouco mais de uma semana
de aula com a primeira operação e mais outra com a segunda.
Eu
sou, ou era, destro. O resultado das 2 operações em sequência foi que do meio
de março até meados de junho fiquei com a mão direita engessada. Quem estudou
naquela época sabe qual era o ritmo de um pré-vestibular. Passei a assistir as
aulas e fazer toscos rabiscos nas apostilas com a mão esquerda. Por sorte
minha, as provas eram tipo teste, de modo que fazer “x” nas respostas era fácil
com a mão esquerda. Mas tinha Descritiva...
Algumas
aulas me foram copiadas sem que eu pedisse por um anjo em forma de colega,
Lúcia Maria Mendes Simões. Ajudou-me bastante a guardar anotações de algumas
matérias onde muita coisa era dita em aula, fora das apostilas, e eu não
conseguia escrever.
Aos
poucos fui aprendendo a ser canhoto. Para estudar em casa, a solução foi bastante
simples: passei a escrever em quadro negro com giz, pois era muito mais fácil
escrever em quadro que em caderno com a mão esquerda.
Como
já disse acima, o gesso da primeira operação foi tirado para fazer a segunda e só
45 dias depois eu me vi livre dele em definitivo. Entretanto o braço havia
ficado confinado desde março, de modo que sua aparência era simplesmente
trágica. As carnes ficaram inchadas e as cicatrizes afundadas, entremeadas de
dezenas de pontos, formando grotescos sulcos. A munheca estava torta, por ter sido
mantida dobrada para facilitar a união dos tendões. Eu tinha a aparência de um
aleijado.
Lembro
que, sozinho no terraço de minha casa, chorei olhando aquele membro retorcido e
disforme. Era-me difícil acreditar que
voltaria ao normal.
SUPERANDO
Então
começou minha luta, com o pré-vestibular à toda. Tinha de dormir amarrado numa
cadeira porque o braço não podia descair, para que o afluxo de sangue não
prejudicasse os pontos internos. Tinha de andar com a mão pra cima, presa na
tipóia com o pulso na altura do ombro esquerdo.
Tive
de aprender algumas coisas simplórias, como me limpar no banheiro, escovar os
dentes, comer, escrever, me vestir, tudo usando apenas a mão esquerda com a
direita no alto 24h, engessada.
Claro
que todos à minha volta me ajudaram. Por exemplo cortavam carne pra mim nas
refeições. No início papai me ajudava a tomar banho com o braço direito pro
alto e envolto em plástico, na maioria das vezes em banheira. Tinha carona pra ir e voltar ao colégio.
Não
comentei ainda, mas aquela droga doía! Passei meses tomando analgésicos até que
passei a me acostumar com a dor. O ápice foi uma consulta em dentista que, como
praxe, mete o motor até onde a gente agüenta. Lá pelas tantas ele parou
perplexo, pois eu não reclamava. Então eu expliquei a ele da resistência à dor
adquirida e ele respirou aliviado, comentando: “- Achei que o nervo estava
morto!”
A
escola relevou minhas ausências nas provas de descritiva até julho, quando fiz uma
valendo por todo o semestre. A mão direita, já sem o gesso mas essencialmente
inerte, apenas ajudava a apoiar esquadro e régua, o resto a mão esquerda tinha
de fazer sozinha.
A
fisioterapia intensiva que passei a fazer numa clínica mostrou que a sensibilidade
da mão avançaria 1cm por mês a partir do corte no punho e passei a contar o tempo que restava para
chegar à ponta dos dedos, mas houve problemas. Apenas um dos nervos regenerou e
resultou em movimentos reduzidos.
Para
resumir a progressão, consegui pegar num lápis/caneta mais ou menos em
setembro, pois a mão estava absolutamente sem força ainda. Minhas primeiras
notas ao piano se deram no final de outubro, com grande esforço pela fraqueza,
alguma dor e pela dificuldade provocada pelo nervo que não regenerou.
A
essa altura eu já me transformara em pequeno gênio. Aprendera a fazer contas de
cabeça, minha memória desenvolveu de maneira extraordinária. Antes que chegasse
ao final das toscas anotações canhotas, já sabia as respostas dos cálculos.
Aprendi a estimar grandezas e resolvia questões de física e de geometria muitas
vezes sem usar a progressão das fórmulas, apenas por intuição.
Quando
chegou o vestibular, em princípio de janeiro/69, eu já conseguia escrever
novamente com a mão direita, meio fraco
é verdade, mas não mais precisava ser canhoto. Só a prova de Descritiva do
vestibular é que foi feita com a esquerda, usando a direita só para segurar
régua, esquadro e compasso. Eu ainda confiava mais na esquerda.
ACOSTUMANDO
Passei
no vestibular. Aos poucos a mão foi melhorando e fui me acostumando com as
limitações. Na PUC só tive alguma dificuldade no curso de desenho a mão livre,
como era cobrada a Descritiva no 1º período do ciclo básico.
Meus
pais sofreram mais que eu, pois para eles o médico (a maioria deles insensível
quanto aos sentimentos do próximo) dizia que eu tinha poucas chances de voltar
a ter movimentos e sensibilidade. Para mim todos diziam que a cura dependia de
minha persistência nos exercícios fisioterápicos.
Sem
muita maldade nem desconfianças, acreditei. Passei a viver 24 horas alongando
os tendões da mão direita com a esquerda. Conversando, assistindo aula, vendo
TV, ouvindo som, o tempo todo eu ficava alongando, alongando... Virou uma
segunda natureza.
Em
relação aos tendões, essa persistência deu resultado. A parte neurológica
dependeu de sorte e dos exercícios de choque que forçavam os nervos a reagir.
Repetindo, um dos dois não correspondeu e é fonte de problemas até hoje. Não
consigo unir os dedos com a mão espalmada, há uma área insensível no dorso e
perdi o discernimento para coisas pequenas.
Por
exemplo, às vezes é um tormento bater foto. A ponta do dedo indicador não acha
o botão de disparo e não raro perco o instantâneo por causa disso. Preciso
olhar para o botão, colocar o dedo em cima e então voltar ao visor para compor
a foto. Às vezes ele escapa de novo e perco mais tempo. As máquinas em sua
maioria esmagadora prevêem o uso do indicador direito para clicar. Os
smartphones vieram para resolver isso (rs rs).
Voltei
a tocar piano! Contudo, a falta do tal movimento de junção de dedos me impede
de tocar acordes complexos. Além disso, peças muito velozes e cansativas me
causam cãibra na mão, porque a perda de irrigação sanguínea pela artéria que
não foi ligada se faz sentir.
Ainda
toco algumas peças clássicas, remanescentes do tempo em que eu estudava a sério.
Faço-o com algumas adaptações de partitura, seguindo recomendações de um jovem
professor de piano que me deu aulas durante poucos meses em 1982:
“-
Jamais deixe de tocar por causa das limitações. Adapte os acordes, simplifique
trechos e cadências, invente, mas toque!”
É
como faço. No mais, a maioria de meu repertório atual é de peças populares que
adapto às limitações existentes. Voltei a gostar do piano, sem a pressão de ter
de ser concertista.
Violão
é mais fácil, pois os acordes são feitos com a esquerda. Mesmo assim, não
consigo segurar uma palheta de guitarra por longo tempo, ela me foge dos dedos
sem que eu perceba. Passei então a privilegiar cordas de nylon, praticando o chamado
violão dedilhado. Pra mim é mais fácil.
Enfim,
sou canhoto para um monte de coisas hoje em dia, como por exemplo para pegar
pequenos objetos em caixas ou bolsos, escovar dentes, limpar-me. Dependendo da
tarefa que estiver executando, um observador ocasional pode decidir que eu sou
canhoto.
CONCLUINDO
Confesso
que passei por uma fase de revolta, lá mesmo em 1968. Achei que minha vida
trilharia um caminho de exceção, diferente dos demais mortais, perfeitas e
saudáveis criaturas.
O maior
trauma a superar, aquilo que mexeu lá dentro de mim, foi que meu braço, àquela época ainda bastante
deformado (melhorou com o tempo), aumentou a timidez que eu já tinha frente ao
sexo oposto. Pegou-me em plena juventude. Não bastasse achar-me gordo e
desajeitado, usar óculos (o que na época ainda era esquisito), ainda tinha aquelas
imensas cicatrizes a piorar minha auto-estima.
Então
- isso percebi décadas à frente - passei a usar, intuitivamente, a teoria de
que devemos aproveitar as crises como oportunidades de melhoria, encarando os
novos desafios com as armas reduzidas com que passamos repentinamente a dispor.
Tinha acabado de descobrir que o dia de hoje não garante o de amanhã, havia que
fazer algo.
Mudei
o comportamento, que era de pasmaceira frente ao cotidiano para uma maior
atenção ao que realmente me importava. Minha mãe, coitada, declarou que “havia
perdido um filho”. Sim, de certa maneira parei de estar ao lado dela no dia-a-dia,
como era costumeiro de minha parte, para então começar a cuidar de meus
próprios interesses. Minha real adolescência começara! Tardou mas veio.
O
tempo, afinal, se encarregou de me demonstrar que mazelas e limitações não fizeram grande diferença no que realmente
importa para sermos felizes. Trabalhei, diverti-me, tive altos e baixos como
todo mundo, com grandes e pequenas superações de menor monta no cotidiano.
Casei-me
e assim estou há 38 anos. Nem minha esposa nem minhas filhas jamais fizeram
comentários acerca da aparência de meu braço direito.
Talvez porque haja outras coisas mais
importantes a considerar do que cicatrizes num braço.
Um de meus pianos eletrônicos - Yamaha DGX630 |
Nota do editor: o post "Superação" citado no primeiro parágrafo é encontrável em