Minha lista de tipos inesquecíveis, há dias publicada, não era limitativa. Era tudo questão de tempo e espaço. Tempo para redigir e espaço ocupado pelo texto.
Muitos outros personagens, com os quais convivi, podem ser incluídos na galeria de tipos inesquecíveis. A todos admirei ou admiro, seja pela inteligência privilegiada, seja pela cultura, pela criatividade, pela história de vida, pelas lições e pelo caráter.
Terminei aquela primeira lista com meus filhos e começo esta com meu pai. Como expliquei, a ordem de nomeação, nesta e na lista anterior, nada tem a ver com mais ou menos importância, estima, respeito ou afeto. Se assim fosse meu pai teria encabeçado, com meus filhos, a lista antes publicada.
1 ) Fernando da Motta Carrano
Em seu sepultamento, seus irmãos maçons, de mãos dadas, formaram um círculo em volta do túmulo. O mais graduado dos presentes, suponho, apregoava o nome de meu pai “Fernando da Motta Carrano” . Ao que, em uníssono, respondiam os demais: “presente”. Por três vezes assim o fizeram.
E Fernando Carrano está presente até hoje. No meu caráter, na minha formação ética e moral. E até em alguns defeitos.
Self made man, na acepção literal, transitou por várias atividades obtendo êxitos bem consistentes, malgrado as limitações que a vida e ele mesmo se impôs.
Era, por profissão, jornalista. Com registro na carteira profissional, feita pelo Ministério do Trabalho, conditio sine qua non para o exercício da profissão, antes da criação dos cursos de comunicação social. Coisas do Estado Novo, que promoveu um rigoroso controle nos meios de comunicação. Era o governo de Getúlio Vargas, ditador.
Sabia tudo de edição de jornal. Foi tipógrafo, copy desk, redator e, finalmente, diretor. Esta última função exercida no Diário Oficial, do Estado do Rio de Janeiro, antes da fusão.
Apresentou, também, um jornal falado, na Rádio Mauá, do Rio de Janeiro, onde era também um dos redatores.
Era espírita, mas por minha mãe, católica, deixou suas obrigações.
Ainda muito jovem abandonou o colégio, onde estava internado, por causa da gripe espanhola, refugiando-se na casa de uma tia.
Pertenceu à Cavalaria da Polícia Militar e esteve convocado para ir ao palco da guerra, nos campos da Itália. O final do conflito salvou-o.
Na vida civil, foi baterista em grupo musical que se apresentava em casa noturna. Nesta mesma casa noturna, tipo nigth club, chegou a ganhar medalha em concurso de dança de salão.
Juiz do Tribunal de Justiça Desportiva, também antes da fusão. Quando faleceu era presidente deste tribunal.
Foi, ainda, presidente da Associação das Escolas de Samba, presidente de dois clubes esportivos, que disputavam campeonatos em Niterói e São Gonçalo: o Sepetiba e o Carioca, respectivamente.
Não resistia a um microfone, e fazia discurso até em aniversários de filhos, mesmo quando presentes apenas familiares. Em função disto, era orador oficial de alguns clubes sociais na cidade e, até, creiam, na Associação Recreativa e Social da Covanca, bairro de São Gonçalo, onde jamais residimos.
Caso único, imagino, de Fiscal de Rendas do Estado que morou de aluguel até sua morte. Além de não ter acumulado bens, nem mesmo uma casa própria para residir, ao falecer deixou pequenas dividas com editora de livros, na padaria da esquina, e na J. Isnard loja que vendia aparelhos eletro-domésticos, pela compra de um aparelho aspirador de pó.
Não há registro de caso semelhante. Isto demonstra sua honestidade, o que muito embora não devesse ser classificado como virtude, tendo em vista as práticas ilegítimas que pontificam no meio, vira uma honrosa exceção. Ou pelo menos uma das honrosas. Seria, mal comparando, como conviver com viciados em coca e jamais ter experimentado a droga.
Uma vida rica, com experiências tão díspares quanto incomuns.
Foi um bom marido e bom pai. Amava demais os filhos. Uma perda enorme para nós e muito prematura, se considerarmos que ocorreu aos 57 anos de idade.
Seu traço mais marcante para mim, era a seriedade e paixão com que entregava ao cumprimento de seus deveres e encargos.
2 ) Comandante Paulo Pessoa
Quando eu o conheci, com a patente de Capitão de Mar-e-Guerra, já não comandava belonaves de nossa frota de então. Mas comandara vários navios e submarino.
Era, então, professor de balística na Escola Naval. Sabia tudo e um pouco mais de matemática.
Em razão disso, duas vezes por semana, na garagem de sua casa, preparava jovens que aspiravam a carreira militar nas forças armadas. Formávamos, aproximadamente, um grupo de 12 alunos. Inclusive um filho dele.
Muito agitado, rigoroso, como sói acontecer com militares chiítas, mas era extremamente simpático e gozador. Todos eramos chamados de burros, inclusive o filho. Este, coitado, era mais exigido e alvo do apagador arremessado pelo comandante em seus momentos de maior inconformismo com o erro.
E foi com este adjetivo – burro - que recebeu minha notícia de que fora reprovado no exame médico, para ingresso na Escola Preparatória de Cadetes do Ar que, à época, estava localizada em Barbacena-MG: “Quer dizer que além de burro é daltônico?”
Algumas passagens ilustram muito bem seu espírito de humor irônico e de gozador. Paulo Roberto Gavião, um dos alunos, faltava com freqüência. Certa feita ficou sem aparecer durante a semana. Quando finalmente compareceu, aula já iniciada, o comandante parou a explanação que fazia e, gritando para fora da garagem: “Maria, trás água gelada e café porque hoje temos visita”.
Num outro episódio, com outro colega cujo nome omitirei, por razões éticas, quando este não conseguia, no quadro negro, desenvolver um simples problema algébrico, o Paulo Pessoa retira, com vagar, de forma estudada, os seus óculos, e comenta “Fulano, o problema maior é que será muito difícil formar uma parelha com você”.
Ele se referia, é óbvio, ao fato de que numa parelha, os animais de tração (burros, bois ou cavalos), precisam caminhar num mesmo compasso, numa mesma marcha. Um não pode ser mais célere do que o outro. No caso do Fulano, ele seria extremamente mais lento.
Assim era o comandante Pessoa que, ao que saiba, jamais teve um aluno seu reprovado nos exames de ingresso na Marinha ou na Aeronáutica.
Muitos, como eu, não ingressaram na carreira por problemas de ordem física. O exame era muito rigorozo e pequenos problemas eliminavam o candidato, como aconteceu com Roberto Durão, que tinha desvio de septo e não queria operar. Com o Eurico César Rodrigues da Costa, que tinha deficiência auditiva. E outros casos como o meu daltonismo.
3) Luigi Quattrino
Italiano que ainda falava português com sotaque. Quando o conheci, ele era subgerente da fábrica da Fiat Lux que havia no bairro de Neves, em São Gonçalo.
Mais tarde, ainda na mesma empresa, foi promovido a Diretor Técnico, responsável pelas áreas de produção de toda a empresa, composta então de várias fábricas espalhadas pelo Brasil: duas no Paraná (uma em Curitiba e outra em Piraí do Sul); uma em São Paulo; uma em São Lourenço da Mata, Pernambuco; e outra em Belém/Icoaraci, Pará. Além da já citada em São Gonçalo-RJ.
Embora a primeira impressão fosse de que se tratava de alguém muito antipático, constatei depois de que na verdade ele era apenas rigoroso com o trabalho. O coração era muito generoso. Não fora assim, teria perdido algumas oportunidades de ir namorar em Cachoeiro de Itapemirim, onde morava Wanda, com quem vim a me casar.
Ele me permitia, uma vez ou outra, compensar o horário de trabalho, para folgar um sexta ou uma segunda-feira, a fim de poder viajar.
Quando me levou à seção que eu supervisionaria, no primeiro dia de trabalho, falando das atividades ali desenvolvidas (era o setor que fabricava as caixas e gavetas), apontou para uma grande mesa retangular, localizada bem no meio do grande galpão, com algumas peças de máquinas em cima e tendo um homem de macacão azul nela encostado: “Aqueles ali são os únicos ociosos que admito”. E arrematou: “Ali trabalham os mecânicos de manutenção, quanto menos eles trabalharem melhor, significa que as máquinas estão produzindo”.
Havia, esclareço aos engenheiros que me leem, que havia um programa de manutenção preventiva. Aquela manutenção, no interior do setor produtivo, era a emergencial que implicava paralisação da máquina em momento inoportuno.
Os mecânicos da manutenção, quanto menos trabalhassem melhor. Mas os demais tinham que produzir. Lembro que certa manhã ele passou pelo setor de trabalho, como fazia diariamente, e me parabenizou por ter resolvido algo que ele recomendara. “Vi que você mandou fazer aquilo (não lembro o que era)”. Ao que respondi que ordens devem ser cumpridas.
E ele, “é, mas infelizmente nem todos agem assim”.
Na última vez em que o vi, em local de trabalho, estava de gravata, sentado atrás de uma mesa, no escritório central do Fiat Lux. Porta entreaberta, bati e perguntei: may I come in? E ele prontamente: between. Era uma brincadeira antiga, dos tempos de chão de fábrica, em São Gonçalo.
Já não o vejo caminhando no calçadão há muitos anos. Mas lembro sempre dele com muito carinho.
4) Outros personagens poderiam ser arrolados, como por exemplo Joubert Santos, médico, empresário, presidente do Laboratório Hepacholan, empreendedor na área imobiliária, lançador de loteamentos e condomínios classe “A” no Guarujá, em São Paulo, de quem ouvi, entre outras coisas, de que só existe uma maneira certa de fazer as coisas. Até mesmo para abrir uma porta tem a maneira correta. Se não estiver de frente para ela, com a chave posicionada adequadamente, há risco de quebra-la. Tirante o exagero do exemplo, não há dúvidas de que existe mesmo uma única maneira inequivocamente correta de realizar qualquer tarefa.
Outro que poderia citar seria o Claudio Antonio Tordino, administrador, executivo em empresa siderúrgica de pequeno porte, defendia a tese de que o fato de ser pequeno tem lá suas vantagens e tal vantagem pode ser explorada com inteligência e criatividade. Dava como exemplo que seria um diferencial fabricar o aço especial que serviria para fabricar a mola da porta do Skylab, satélite da moda. Para as empresas gigantes da siderurgia, com instalações para grandes corridas de aço, fabricação de muitas toneladas, tal negócio seria inviável pela escala de produção. Assim como a mobilidade para variar a fabricação de produtos, identificando nichos episódicos. Uma empresa grande move-se como um paquiderme, dizia.
Enfim, muitas pessoas são ou foram tipos inesquecíveis. Quem sabe volto ao assunto.