Infelizmente não estou falando do Brasil. Aqui, e há quem
prefira, o que temos é o jeitinho
brasileiro, o trocado para a cervejinha,
a necessidade de advogado e/ou despachante, o esperto.
A premissa, entre nós, é de que a pessoa está mentindo, por
isso precisa provar que está de boa-fé, dizendo a verdade. Nos países
civilizados, de primeiro mundo (e muita gente não sabe o que é isso), dá-se
exatamente o inverso, de saída você está com a razão e postulando um direito que precisa
ser respeitado.
A esta altura alguns estão conjecturando de onde, quem sabe do
nada, tirei estas elucubrações que iniciam o post?
Pois vou lhes contar.
Há dias enviei mensagem eletrônica para uma cliente
reportando aspectos de um processo. Ela respondeu laconicamente, informando
estar em viagem e que na volta faria contato.
O contato foi hoje cedo. Indagada que tal a viagem e aonde
foi, respondeu que viajou para os Estados Unidos, para a região da Nova
Inglaterra, em especial Vermont que tinha muita vontade de conhecer, mais especificamente
no outono, quando a paisagem local é de tirar o fôlego.
Já adianto que ela
adorou a viagem e mesmo o contratempo de um acidente automobilístico, não comprometeu
o resultado do passeio.
Vou contar desde o início tal qual ela me relatou.
Decidiram, ela e o marido, em férias, fazer esta viagem sem
os filhos, às voltas com trabalho e estudos.
Decidiram ir e voltar por Nova Iorque para aproveitamento
melhor de milhagens. E assim fizeram. Já na cidade que nunca dorme alugaram um
carro para a viagem até a região de Nova Inglaterra, no nordeste do país.
Falou muito bem da região e em espacial de Vermont, o segundo
menor estado em população. Confirmou que a paisagem
é tipicamente rural, de vida tranquila, com estradas que são tapetes,
margeadas por uma vegetação exuberante, do amarelo ao vermelhão no outono.
O acidente, que serve de exemplo para minhas considerações
iniciais, deu-se no Maine, outro estado da mesma região. Ao chegarem a uma pequena
cidade, numa estrada de três pistas para cada sentido, e movimentado comércio
dos dois lados, um carro atravessou-lhes o caminho. O motorista pretendia
atravessar para o outro lado e, muito afoito e calculando mal as velocidades,
ao invés de ir até o próximo retorno, resolveu cortar e passar na frente do
carro onde estava minha cliente, com seu marido ao volante.
O choque foi forte, pegando a frente do carro onde estavam,
que como já contei foi alugado em NY. Amassou tanto que travou a roda na
lataria. Felizmente ninguém se feriu. Em nenhum dos dois carros.
Recuperados do susto, verificaram que ao lado havia encostado
um veículo dirigido por uma senhora de cerca de cinquenta anos, que abrindo o
vidro lateral de seu carro indagou se alguém estava ferido e se oferecendo para
testemunhar o caso.
Você que está lendo sem prestar muita atenção, atente para ao fato de que a senhora estava se
oferecendo como testemunha. Esta já é uma enorme diferença entre nossas culturas.
Aqui ninguém quer testemunhar nada e se furta a fazê-lo mesmo quando
solicitado. Imagine se oferecer.
Voltando a acidente. O motorista do carro que provocou o
acidente também abriu o vidro lateral e resmungou alguma coisa que nem minha
amiga e nem seu marido entenderam. Mas foram socorridos pela senhora que se
oferecera para testemunhar, que explicou que ele apenas dissera que assumiria a
culpa. Concordava que fora o responsável.
Enquanto conversavam aguardando a chegada da autoridade
policial, o que levou "intermináveis" dez minutos, desde de que a mesma senhora
solícita telefonara alertando sobre o ocorrido, ficaram sabendo que este gesto
de assumir imediatamente a culpa, está ligada a diminuição das penas em cinquenta
por cento.
Com isso, o motorista que admitiu ser culpado, iria reduzir o
tempo de perda do direito de dirigir, de dois para um ano de impedimento.
Notaram as penas? Uma delas privativa do
direito de dirigir por um ano. Seriam dois, mas com a assunção da culpa e um
curso de reciclagem ficará impedido por apenas um ano. Tem o aspecto
indenizatório que deixarei de lado porque o carro era alugado e este lado da
questão não interessa ao meu discurso.
Na cidade onde ocorreu o acidente não havia agência da Alamo,
onde alugaram o automóvel, mas bastou um contato telefônico para serem
orientados de que deveriam se dirigir a
uma outra locadora (regional), com a qual a Alamo Rent a Car tem convênio de
reciprocidade.
Esta outra agência era pertinho e levados pela mesma
testemunha gentil chegaram em minutos. Ao cabo de menos de uma hora já estavam
com outro veículo em direção ao destino que traçaram para aquele dia.
Não contei o que se passou quando da chegada da viatura policial.
A primeira abordagem do guarda, depois dos cumprimentos de praxe, foi perguntar
se havia feridos. Informado que não, pegou seu talonário e passou a fazer o
relatório do caso. Era preciso uma testemunha para o motorista que admitiria a
culpa. Um transeunte que parara para dar aquela espiadinha aceitou testemunhar.
Assim, com as duas testemunhas, o policial escreveu o que
apurou. O motorista estava sóbrio, em seu juízo perfeito, apenas muito apressado
e desrespeitou as regras de trânsito. Assinaram todos os envolvidos, com as
testemunhas e estavam liberados para retirar os veículos e seguir a vida. O
culpado compareceria a um tribunal municipal que imporia as sanções.
Tudo simples até aqui, mas o final é mais simples ainda.
Voltaram para Nova Iorque onde deveriam devolver o carro. E o
marido de minha cliente já conjecturando sobre o que dizer a respeito do
acidente. Explicações, etc.
Chegaram ao balcão da Alamo, e a atendente não queria saber da
história, apresentada a cópia do contrato de locação, ela acessou o terminal e
o histórico estava todo lá no computador.
A atendente não precisou, sequer, ir dar uma olhada no
carro, que nem era o que fora locado. Pegou apenas as chaves e pronto. E não
nos esqueçamos que estavam devolvendo outro carro. Levaram um preto e
devolveram um vermelho de outra montadora.
Puxa! Civilização é isso, primeiro mundo mesmo. As pessoas
acreditam em você como princípio, se você mentiu ou trapaceou depois responderá
por isso, mas se estiver certo ninguém complica sua vida com burocracia,
formalidade, cafezinhos, agrados, xerox disso e daquilo.
Quando acabou a narrativa eu já estava impressionado, pois
embora tenha vivência de viagens ao exterior onde já presenciei casos semelhantes
com lições de educação, cortesia, e profissionalismo, esta não é a minha
realidade profissional no Brasil.
Já estava impressionado, como disse, mas tinha mais. O Departamento
Jurídico da Alamo Rent a Car, desde a Flórida, onde tem sua sede, telefonou para a casa
deles, aqui no Brasil, perguntando se tinham algo mais a questionar ou pedir.
Meus clientes (não estou mencionando nomes porque não pedi
autorização) responderam que não e mencionaram que haviam tirado fotos do local
do acidente e dos veículos envolvidos.
Resposta do Jurídico: Se não for problema ou trabalhoso
mandem-nos, por favor, as cópias. Só isso e nada mais.
Agora quem não sabe do que se está falando quando mencionamos primeiro
mundo, civilização, é isso aí.
Esta história aconteceu neste lugar maravilhoso (vide abaixo). As imagens são do Google, mas se eu pedisse teria (talvez) fotos feitas pelos protagonistas da aventura.