26 de novembro de 2014

DPAC- Vivendo na Torre de Babel*


Por
Alessandra Tappes








As vésperas de meu filho completar 14 anos ele foi diagnosticado com DPAC.

O que todos achavam que era excesso de zelo, mimo da minha parte e desatenção e preguiça da parte dele, ganhou esse nome aí: DPAC.

Mas vamos por partes. O que é isso aí? DPAC significa Desordem no Processamento Auditivo Central. O portador desta disfunção ouve perfeitamente, mas seu cérebro não processa o que ouve. Fica tudo bagunçado na sua mente. Tudo confuso, sem começo, meio e, logicamente, sem fim algum.

É considerada uma neuropatia auditiva.  Uma falha no sistema auditivo central. Ainda não se conhece a causa concreta para o surgimento do DPAC, mas entre as mais cogitadas estão: permanência em UTI-Neonatal por tempo superior a 48 horas; fatores genéticos; otites nos três primeiros meses de vida; experiências auditivas insuficientes durante a primeira infância além de processos alérgicos, rinite, e sinusite.

João nasceu com 8 meses de gestação, teve parada respiratória, ficou 8 dias na UTI, depois mais 8 na CTI e tem uma alergia crônica tratada com antialérgicos de uso contínuo e injeção semanal para controle da rinoconjuntivite crônica que tem. Dentre as prováveis causas relacionadas, ele apresenta 3, o que aliado aos sintomas e seu histórico médico, confirmam o diagnóstico.

A DPAC está no “mercado” há 15 anos, quase a idade de João.

Mãe de primeira e única viagem, eu sentia que algo estava errado com ele, mas por ser filho único, neto único, sobrinho único, deixei por conta dos mimos, como diziam todos. Mesmo assim, vez por outra, eu consultava alguns médicos a respeito da dificuldade que ele apresentava. A resposta era sempre a mesma: o menino é superprotegido e deve melhorar com o tempo.

João não entende piadas, frases com duplo sentido e expressões cotidianas. Mas quando descobre o sentido da piada, ele por sua vez aluga o assunto até gastar! Piadas acabam ficando sem graça de tanto que ele as usa, mas para não desestimulá-lo a interpretar sozinho, rimos como se fosse a primeira vez. Claro que lá pela 99º vez falamos com todo amor e carinho que já ouvimos...

Outro aspecto sintomático que ele apresenta: imita o que lhe parece engraçado. Vive situações que outras pessoas viveram e percebe que chamou atenção. Exemplo: se um colega tropeça e desperta gargalhadas, ele vai tropeçar (de propósito) e rir mais do que a plateia. Além disso, vai relatar várias vezes que tropeçou e todo mundo riu. Novamente entramos com os comentários delicados para não frustrar.

 Por tudo estar bagunçado em sua cabeça, João tem uma dificuldade enorme em interpretar o que é pedido. Imaginem seguir um comando sem ao menos entender o sentido dele.  Agora imaginem seguir vários. A confusão surge instantaneamente na vida dele.

No começo eu achava que ele se “fazia” desentendido, ficava com a carinha de paisagem e com um ponto gigantesco de interrogação gravado na testa, tomando conta da sua fisionomia. Mas com o tempo vi que essa expressão era contínua. Suas dúvidas eram as mesmas no dia seguinte e em horas depois. Descobri que meus comandos e esclarecimentos tinham que ser o Pai Nosso de todo o dia, isto é, todos os dias repetir as mesmas coisas, sem tirar nem por cada informação.

Mexer na geladeira por iniciativa própria sem ordem de terceiros (e olha que me incluo nisso) nem pensar! Combinar roupa, querer ir ao shopping sozinho ou com seus amigos como passeio casual, não passa pelos seus pensamentos. Tomar decisões? Não sabe ainda o que é isso. Agora, imaginem minha preocupação, pois está indo para ensino médio, prestes a completar 15 anos, mas com mente de 10.  Não confundir com retardo mental, pois não apresenta prejuízo intelectual.

Aceita comandos sem se rebelar. Viaja sozinho de avião desde seus 12 anos, embora cheio de ordens e recomendações repetidas diversas vezes antes de embarcar. De uma pureza única, não vê perigo em nada e acha tudo de bom tamanho. Tudo é confiável, todos são confiáveis. Se tiver pizza no lanche, ele fica muito feliz, mas se for pão com manteiga, ele se conforma e não reclama, mantendo a mesma expressão.

Uma de suas maiores aliada é a boa e velha rotina. Todos os dias repetir as mesmas atividades ajuda a exercitar a mente. Ter hora pra tudo e explicações detalhadas, facilita seu desempenho. Frases longas ou moscas voando em sua frente fazem com que ele perca o rumo no meio do nada. Enfim, tirar da rotina, é voltar à estaca zero do tratamento contínuo, uma vez que DPAC não em cura, sendo apenas possível ensinar o cérebro a responder a novos estímulos.

A recuperação acontece graças à neuroplasticidade – capacidade para se moldar a uma nova realidade. “É fundamental que o tratamento seja interdisciplinar, com a atuação de otorrinolaringologistas, fonoaudiólogos, neuropediatras, psicopedagogos e neuropsicólogos. A reabilitação proporciona melhora na qualidade de vida e um cotidiano normal para os estudantes”, evidencia  Dra Rita de Cássia Cassou Guimarães, mestre em clínica cirúrgica pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Seu rendimento escolar é de médio a ruim.  São poucas as matérias em que consegue alcançar boa nota e mantê-la. Repetiu o segundo ano primário, e, a alegação da professora na época, não foi por nota, mas por ser uma criança apática, que não brincava com as outras, não tomava iniciativa na classe, não participava de atividades em grupo. Coincidentemente esta foi à fase em que eu e o pai dele nos separamos o que justificou pela pediatra e familiares seu comportamento e “baixo rendimento escolar”.

Atualmente faz acompanhamento com neurologista, clínica geral, fonoaudióloga. Depois das férias, começará com o tratamento com psicóloga. A escola também tem que estar informada sobre o assunto, pois seu mundo diferente não é visto a olho nu. Na escola dele, tive dificuldade em obter ajuda, pois esta disfunção era novidade para as pedagogas e, além disso, parece que falta ao corpo docente interesse em promover aprendizagem. O que vale hoje é passar de ano, o que contraria a nossa opinião a qual o que importa é aprender e entender.

Hoje em dia, ainda tem muita dificuldade em interpretar textos, parágrafos, questões. Temos que traduzir frase por frase até entrar na cabeça dele, mas mesmo assim se no dia seguinte perguntarmos o que ele aprendeu sobre o assunto, virá com aquela cara de dúvida que citei lá em cima.

Mesmo com essas dificuldades no seu dia a dia, João vai sozinho a consulta semanal com a fono, ao ortodontista, aos cursos de informática e inglês e ainda executa pequenos serviços como correio e compras de emergência. 

Muito embora o processo seja lento quanto aos resultados de tudo que aprende, motivado pela já citada pela curta capacidade de absorver o novo, seguimos as orientações no sentido de estimula-lo a todo instante.

Estou abordando o tema para que sirva de ajuda em outros casos semelhantes ao meu. Portanto se você identificar alguma semelhança com alguma criança a sua volta, ou mesmo nos casos já diagnosticado DPAC, fale sempre olhando nos olhos e de forma bem clara. Faça seu pequeno repetir o que lhe foi passado, se usado um jogo de palavras não se esqueça de dizer que é brincadeira, as palavras de duplo sentido e expressões cotidianas, caem como outro idioma na sua cabeça. Paciência é a sua ordem, aliás, tenha sempre. Como são literais demais, não sabem mentir, inventar e usam da sinceridade o tempo todo. Dão as respostas mais francas e nem sempre esperadas.


É difícil sim, mas assumi ser mãe, educadora, babá, tradutora, professora e tantas e outras designações que forem me dadas para ajuda-lo. Não posso desistir de querer ver meu filho bem encaminhado. Tenho preocupações normais que rondam o meu diploma de mãe. Mas saber que ele pode andar sozinho, fazer suas escolhas, seguir seus instintos, não tem preço que pague meus esforços de hoje e sempre.


*NR. Como viver num mundo sem entender o que os outros falam.



Fontes de pesquisa:

5 comentários:

Jorge Carrano disse...

O João, que conheço pessoalmente, é um jovem educado, respeitoso e bonito, capaz de atrair o interesse das jovens com as quais convive, em especial na escola.
Como não tem déficit intelectual, fico tentando imaginar a dificuldade que terá para lidar com isso do relacionamento além da amizade.
Pode parecer pretensioso mas achamos que esta postagem tem um caráter interesse público em face da pouca divulgação deste diagnóstico.
Eu nunca ouvira falar desta disfunção do sistema auditivo central.
Quem sabe algumas mães, principalmente, poderão ser alertadas pelo conjunto de sintomas comportamentais aqui reportados pela Alessandra.
Alessandra que já conquistou a tantos quantos frequentam o blog pelo romantismo, pela sensibilidade arraigada em seus posts, certamente está agora a conquistar um outro tipo de respeito e admiração: a da guerreira que faz tudo com e por amor.

O João, por sua vez, é este menino ingênuo e amoroso que se dá a conhecer no post que aqui publicamos e que está em
http://jorgecarrano.blogspot.com.br/2014/07/minha-infancia.html

(É preciso copiar e colar o endereço na barra do navegador)

Alessandra Tappes disse...

Jorge

Novamente agradeço pelo espaço cedido e transformar um post em utilidade pública. Esse alerta que faço aqui é em função da nossa busca incansável de respostas e tratamentos adequados. Quanto mais divulgado, acredito que mais esclarecido tornaremos.

As dúvidas de um futuro na vida de João tbm me preocupam e mto, pois enquanto os garotos da sua idade pensam em namoro, João ainda sonha com parques de diversão.

Mais uma vez, agradeço seu espaço.

Bjs!

Freddy disse...

Belo, comovente e acima de tudo corajoso depoimento da Alessandra, dado o caráter extremamente pessoal do mesmo.
Esse texto é bem no espírito que eu desejo para o Generalidades Especializadas e eu sinceramente desejo que Alessandra tenha sucesso na educação de João.
Abraço
Freddy

Riva disse...

Um depoimento forte de uma mãe mega forte, que deve ser compartilhado por todos nós, em nossa imensa pequenez. Não sei mais o que dizer ....

Alessandra Tappes disse...

Quanto mais divulgado, menos mito ela se torna.

Obrigada pelo apoio meninos.