14 de abril de 2015

No divã com Freud March




Por
Carlos Frederico March
(Freddy)









Quando escrevi minhas toscas histórias a quatro mãos com meu irmão Paulo (Riva neste blog), fiz uso de um personagem chamado Freud March (pronuncia-se Fróid March), “psicólogo de mesa de botequim”. É um de meus alter-egos nas histórias e apareceu fruto de tendência que eu tenho de analisar o comportamento alheio sem base alguma (vale admitir).

Quem ficava puta com isso era minha psicoterapeuta, que achava que eu estava a esmerdalhar sua profissão (rs rs).

O fato é que Freud March nasceu muito antes...


   

O COMEÇO

Como alguns seguidores do blog já sabem, minha mãe ficou cega a partir de 1958, paulatinamente. Descolamento de ambas as retinas e à época poucos recursos havia. Eu dei sorte porque descolei também uma e, apesar de ter a visão altamente prejudicada no olho direito, cego não fiquei.

Inconformada com seu destino, ela se recolheu à cama e todos que iam à nossa casa conversavam com ela no seu quarto. Nossa sala de estar passou a ser um elemento decorativo em casa.

O fato é que eu me acostumei a me deitar a seu lado e conversar às vezes mais de hora. Em parte, era um descanso para meu pai, que se arvorara em olhos de minha mãe e vivia a seu lado 24 horas, abdicando de sua própria personalidade. Leu incontáveis livros para ela, levava-a para passear, ao teatro....

Foi numa dessas conversas que ela me confessou porque era tão ligada a mim, quase uma obsessão. Foi desdobramento de um caso de depressão pós-parto, clássico hoje em dia.

À época, apresentou-me uma leitura diferente do caso (acho que não se falava na tal DPP), racionalizando o episódio a seu modo. Ela me disse que a real razão dela me desprezar assim que eu nasci foi minha cor (!), escura demais para seu gosto pessoal. Ela era branca leite, meu pai era moreno. Nasci talvez um pouco mais moreno do que me tornei depois, pois clareei (sem menção a Michael Jackson, por favor...).

Seu desprezo por mim durou cerca de uma semana, ela me relatou. Com muito tato, a parteira/ginecologista (Dra. Gertrudes) fê-la perceber que ali estava um ser indefeso e que  nada tinha a ver com seus traumas ou preferências. Logo tive uma babá negra, a Celina. Não lembro de minha mãe ter relatado se Celina chegou a ser minha ama de leite.

O desdobramento disso tudo, como comentei acima, foi que passei a ser tratado com privilégios, por puro remorso ou sentimento de culpa.

AS CRISES

Mamãe brigava muito com meu pai, comigo e com meu irmão. Na verdade, brigava contra o destino cruel da cegueira, para ela injusto. E eu era chamado para atuar como juiz de uma situação de litígio.

Como assim? Sim, eu, com parcos 10, 11, até uns 16 anos de idade, era amiúde chamado ao leito materno para acalmá-la, quando meu pai tinha esgotado os argumentos, ou quando ele era o alvo da ira momentânea.

Aprendi à custa de muita porrada (virtual) a sustentar discussões com minha mãe. Ela usava frequentemente um recurso mortal para vencer debates, que era pegar palavras soltas na argumentação alheia e desviar o rumo de conversa, e isso acompanhado de lágrimas ou mesmo gritos de ira. Ou seja, para ela não estava em jogo o assunto, e sim ganhar a discussão!

Diga-se passagem que não era um recurso exclusivo de minha mãe, parece-me que as mulheres em geral são peritas nesse quesito. Contudo, batalhei duro. Custou-me anos a aprender a retomar o rumo lógico durante as acirradas contendas verbais.

Não raro o cenário era prejudicado pelo fato dela estar sob efeito de barbitúricos que não faziam mais efeito mas que obnubilavam seu raciocínio, tornando a argumentação difícil e desgastante. Foi assim, na prática dolorosa (como são todas as crises familiares), que aprendi negociação sob pressão.

AS CONVERSAS

Durante os momentos mais calmos, minha mãe me contava muito da vida, repassando suas experiências. Passei muitas, incontáveis horas deitado ao lado dela conversando. Era o que ela, cega, mais podia fazer: conversar.

Pode parecer estranho, mas quem me iniciou nos assuntos teóricos do sexo foi ela. Meu pai não tinha jeito pra isso, a gente mal se falava (essa é a pura verdade) e minha mãe era bem descolada.

Foi quando eu tinha 12 anos que ela começou a me contar sobre o universo. Nosso quintal tinha bom espaço e pouca iluminação. À noite a família se juntava para conversar debaixo das estrelas e isso vinha atraindo minha atenção. Compraram-me um álbum de figurinhas sobre astronomia (em 1963), logo a seguir me presentearam com telescópio (Natal de 1965).

Não sei por mera atração ou se por perceber inconscientemente que minha mãe jamais veria novamente aquilo que me relatava com tanto esmero, apaixonei-me pelo tema. Até hoje, como se constata em inúmeros posts no Generalidades Especializadas na série Papo de Astronomia.

Comprei inúmeros livros técnicos (a maioria em inglês) e me tornei assinante de diversas publicações estrangeiras. Tornei-me o que é chamado de “armchair amateur astronomer”, que designa o astrônomo amador que se baseia em livros, raramente observa ao telescópio.

ESTÍMULO AOS ESTUDOS

Minha mãe acompanhava nossos estudos e participava ativamente dos grupos de trabalho da escola, quando minha turminha se reunia lá em casa. Podia-se dizer que “estudava junto” e nos levava (a mim e aos meus colegas) a um nível de comprometimento com o aprendizado sempre muito elevado. Papai também participava, em geral na formatação dos trabalhos a serem apresentados, pois tinha bastante experiência didática.

Colocaram-me para aprender piano desde meus 8 anos (1959). Meus pais compraram muitas coleções de LPs e minha mãe me estimulou a ouvi-las lendo os fascículos explicativos. Sem explicações, muita coisa da música erudita passa despercebida e não raro fica incompreensível.

A importância que minha mãe deu ao piano foi tal que durante minhas horas diárias de estudo era terminantemente proibido a quem quer que seja me interromper. Fosse meu pai, um amigo me chamando, fosse alguém ao telefone, era barrado.

Para seu desespero, logo vivenciamos a era do rock, com Beatles, Rolling Stones e a Jovem Guarda. Não posso negar que houve uma certa anuência de meus pais, mesmo que pesarosa: ganhei uma linda guitarra elétrica no Natal de 1967 para dar andamento a um pequeno grupo de rock que pensávamos em formar na turma do bairro.

Piano não era muito bem-vindo no cenário pop-rock e não existia ainda teclado barato. Mesmo tendo aderido ao novo movimento musical, eu mantive minhas raízes eruditas, pois me agradei dos gêneros rock progressivo (anos 70) e hoje em dia heavy metal sinfônico. Todos guardam semelhança de forma com as peças clássicas, incluindo libretos explicativos do enredo.

O ACIDENTE

O acidente com minha mão direita em março/1968 foi um marco em minha vida, verdadeiro divisor de águas. Foram seccionados 11 tendões, 2 nervos, 1 artéria. 10 tendões foram religados e 1 dos nervos voltou a funcionar.

Tenho limitações de movimento e sensibilidade, com as quais aprendi a conviver. Toco piano e teclados, mas com adaptação das partituras no caso de clássicos. Violão de nylon também é confortável de dedilhar, mas o uso de palheta para violão de aço ou guitarra elétrica é impossível pela insensibilidade da ponta dos dedos: ela me escapa.

Foi esse acidente que me levou a perceber que precisava mudar e me libertar do jugo materno. Antes eu estava tranquilo, achando que a vida duraria 200 anos (força de expressão) e que eu teria todo o tempo do mundo para vir a ser eu mesmo. Ficar quase aleijado me jogou na cara que o amanhã era inesperado, para o bem ou para o mal.

Para minha mãe, foi um baque duplo. Sentiu morrer (eu ia escrever “viu morrer”, mas como, se era cega?) a esperança de me formar pianista clássico, concertista. Abro parêntesis para confessar que eu mesmo não queria isso para mim, mas não conseguia me desvencilhar da teia montada à minha volta.

Quanto ao cotidiano, dizia-me ela que havia “perdido um filho”, na esperança de me ter de volta à barra de sua saia. Mas eu já estava irremediavelmente mudado. Minha verdadeira adolescência começara, talvez tarde demais (1968, 17 anos).

Com essa nova consciência adquirida através de uma fatalidade, minha vida seguiu. Vieram o vestibular, a faculdade (PUC-RJ), a Embratel (meu único emprego), o casamento (também único), a experiência de 7 meses na Alemanha, as filhas...

FREUD MARCH

Freud March a essa altura, sem mesmo se dar conta, já havia nascido. Passou a agir aqui e ali, para tentar ajudar a si mesmo e aos amigos que o procuravam em mesas de botequim, reais ou virtuais.

De vez em quando, Freud March sai das histórias fantásticas e, tornando-se real, se mete na vida alheia e é rechaçado com veemência. Como assim ele se arvora em saber o que anda na cabeça dos outros?

É verdade, mas se Freud March podia, com 11 ou 12 anos de idade, ser chamado a aplacar a angústia desmedida de sua própria mãe cega, porque hoje, com a experiência de décadas de vida, não poderia sentar-se para leigamente debater comportamento, seja o seu próprio ou o de familiares, amigos e colegas?



Créditos:

Acervo do autor, caracterizado como Freud March 

8 comentários:

Ana Maria disse...

Hum! Um caso de dupla personalidade?

Jorge Carrano disse...

Ana Maria,
O só fato de você tirar o pneu, já deixou o Freddy contente. O comentário fica irrelevante (rsrsrs).

Riva disse...

KKkkkkk .... já brinquei aqui algumas vezes, vcs lembram ?...estamos falando com Freddy, Carlos, Freud March, Carlos Frederico, Charles ? rsrsrs.

Para não entrar e sair sem nenhum comentário, vou apenas mencionar o meu post :
http://jorgecarrano.blogspot.com.br/2015/02/lista-de-gratidao.html

Nele menciono meu irmão :

Carlos, meu irmão – o significado e o valor da individualidade.

Por tudo que vocês leram no post do Freddy, para quem me conhece ou conheceu parte da nossa vida de adolescente, sabe bem a abissal diferença entre nós dois, criados sob o mesmo teto.

Foi um mega aprendizado, para mim ... o que significa INDIVÍDUO. Individualidade em sua maior essência. Embora muitas das percepções, compreensões e certezas tenham surgido tardiamente, de minha parte e da parte da minha mãe.

Mas .... TUDO valeu a pena ! E como !

E como tudo aqui termina mesmo em futebol, eu hoje estou numa dúvida cruel ... qual jogo ver ? Barça x PSG ou Bayern x Porto ?

Jorge Carrano disse...

Melhor do que estes dois, será Vasco e Rio Branco, logo mais (rsrsrs).

Freddy disse...

Nas referidas histórias, o personagem principal é o próprio Freddy (Carlos Frederico sai de si mesmo e vai viver suas fantasias como Freddy March), sendo que os demais aparecem eventualmente:

Freud March - psicólogo de mesa de botequim.

Miami March, ou simplesmente MM, detetive desastrado, tentando atabalhoadamente desvendar tramas e crimes.

Vale registrar que MM não foi inventado por Carlos Frederico e sim por um amigo, que participou de algumas histórias no passado. Aliás, ele próprio também tinha seus personagens pessoais: Compêndio Siqueira, Lulu Cogumelo e Caps Lock Joe.

Teríamos, pois, 4 personalidades: o real e 3 imaginários. Que turma, hein?

O Freddy March que assina os textos no blog é o imaginário personagem fingindo ser real.

Dãããã......
<:o))

Riva disse...

Li e acabei de ter uma distensão cerebral .... kkkkk

Anônimo disse...

Isso porque é "psicanalizado". Se não, seriam dezenas de personagens. rs

Freddy disse...

Já leram o romance Sybil, de Flora Rheta Schreiber? Excelente!
A seguir, um spoiler: não leia se não quiser saber o final da história!
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Ao longo da trama, a psicanalista começou a desencavar as personalidades ocultas em Sybil, que eram responsáveis pelo seu errático comportamento. Ao final, chegou ao fantástico número de 18!
4 é fichinha!
<:O)