Estavam já na terceira garrafa de Portuguesa¹. Os cascos² vazios, num canto do balcão, permitiriam ao Manoel, dono do buteco, contabilizar ao final da noite quantas cervejas teria que pendurar³. Eles freqüentavam o bar, que apelidaram de Manel´s, por duas razões principais: o dono confiava e fiava*, e a loura* era gelada pois conservada, para clientes especiais, na parte de cima da enorme geladeira com revestimento de madeira, verdadeiro frigotífico.
A conversa rolava livre. Sempre assim. Os assuntos se encadeavam interligados por um fato, uma pessoa mencionada ou até por um anônimo passante que chamasse atenção. E intervenções do Manoel, claro. – Vão querer uma linguicinha?
Eu nem estava ligado na conversa, mas ao ouvir falar de Deus, agucei os ouvidos:
- Se você pudesse fazer um pedido a Deus, um único e mísero pedido, que Ele atenderia, o que você pediria?
- Pô, pediria para não morrer.
- Xíii!!! Imortal ? Esse ele não vai atender. Nem ao filho dileto, embora adulterino*, Ele deu a imortalidade terrena.
- Pô, p’ra início de conversa, filho também sou, pelo que dizem os padres. Depois, se Ele não atender é sacanagem, porque você falou que um único pedido Ele atenderia. Nem Nele se pode confiar hoje em dia? Agora também “o homem” vai mijar p’ra trás e não honrar a palavra?
- Eu não gostaria de não morrer. Chato teus amigos partindo p’ra melhor e você tendo que começar novos relacionamentos. E tem mais, você continuaria envelhecendo sempre, ou queria parar numa certa idade?
- Sei não. Talvez parar nos trinta anos. É uma boa idade.
- Casado e com filhos? Se fosse, olha que droga ver a mulher e os filhos envelhecendo e morrendo... só bebendo muito mesmo.
- Não pensei nisso. Pensei em não morrer e ficar toda a vida aqui, tomando as cervejas do Manel …enquanto ele vivesse.
- Pois eu pediria sabe o que? Que Ele aparecesse, diante de mim neste momento, para podermos tirar a maldita dúvida se Ele existe mesmo, ou é como a mula-sem-cabaça, de quem todos falam e nunca aparece de verdade.
E o Manoel, já cerrando uma das portas. - Por hoje chega, gajos*. Olha que se não me pagam até amanhã, corto-lhes o crédito. Mesmo que Deus Pai Todo Poderoso venha interceder em contrário.
Notas explicativas:
1* Antiga cerveja da Antártica
2* Vasilhame, garrafa
3*• Em alguns bares, antigamente, havia um prego na parede ou balcão, onde os donos espetavam, e por isso penduravam, as contas não pagas a vista.
4* Fiar é dar crédito, para pagamento futuro.
5* Apelido da cerveja pilsen, entre os apreciadores, no Rio de Janeiro.
6* Maria era casada com José. Logo foi concebido fora do casamento e, portanto, adulterino.
7* Indivíduo ou sujeito qualquer.
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