12 de fevereiro de 2013

RECONTAR





Por
Carlos Frederico March
(Freddy)







Outro dia, ao começar a relatar curioso “causo” ocorrido em minha vida, fui interrompido com um gesto de impaciência de minha filha, que disse  "- Você já contou isso!".

Para ser sincero, vem acontecendo com certa frequência e, para minha surpresa, até por parte de minha esposa. Tais reprimendas, vindas de pessoas muito amadas, me deixaram imediatamente triste, acabrunhado, meio que rejeitado. Estarei eu errando ao não me dar conta de que ando me repetindo? Será sintoma de envelhecimento, a me guiar pelos severos olhares de crítica de que fui alvo? Será um indício da visita do "alemão" (Alzheimer)?

Nem sempre, considerei. Houve vezes em que eu tive plena consciência de estar recontando os “causos” por mero prazer de fazê-lo. Se a gente gosta de relembrá-los, porque um ouvinte amigo não se permitiria partilhá-los conosco nessas releituras? Será porque quem vivenciou tem mais emoção ao recontá-los do que a pessoa que não teve a experiência real?

Decerto tenho vivenciado situações em que pessoas de avançada idade repetem e repetem as mesmas estórias, enchendo o saco de todos em volta. Essas pessoas não têm noção do que estão fazendo porque estão, efetivamente, sofrendo de perda de memória recente e, talvez, Alzheimer ou doença degenerativa similar.

Penso ainda não ser (ainda) o meu caso.

Claro, envelhecer é fato da vida. Não só a dificuldade de fixar fatos recentes como estar sendo flagrado em lapsos me mostram que não sou mais o mesmo. Os sintomas vêm aumentando discretamente com o tempo. Isso posto, habituei-me a registrar em diário o que de importante me acontece e releio-o com frequência, pois o reler e rever ajuda a fixar, minimizando os efeitos negativos da perda de memória. Faço palavras cruzadas, tento memorizar novas músicas ao violão ou piano, crio textos para posts tentando manter certa variedade, ou seja, me viro para manter meu cérebro ativo. Morrerei, mas morrerei lutando!

No entanto, deixando de olhar para dentro e olhando para fora, aproveitei e me perguntei: “- Porque a maioria das pessoas não gosta que se lhes reconte causos?”

O que tornaria tão desagradável ter de ouvir de outrem o relato de um fato que eventualmente já seja do seu conhecimento?

Alarguei o campo de análise e recolhi fatos. Conheço pessoas que não veem um filme - seja ele drama, policial, comédia, documentário, até mesmo shows musicais - pela segunda vez, argumentando já conhecerem o enredo ou desfecho.

Outras se recusam a ler um livro mais de uma vez. Muitas detestam repetir restaurantes, bares, querem viajar a cada vez para um lugar diferente, negando-se a uma revisita mesmo que dele tenham gostado.

Sim, conheço muita gente assim. Diria até que a maioria. Post recente neste mesmo espaço tece loas ao enfrentamento do desconhecido como sendo atividade prazerosa e eu acrescentei num comentário: recomendado pelos médicos.

Mas conheço também quem aja de forma diferente, gente mais parecida comigo.


Eu me sinto feliz casado com a mesma mulher há quase 36 anos, revejo filmes e shows vezes sem conta, releio livros... Podem considerar exagero, mas já li a saga de Angélica, a Marquesa dos Anjos (14 volumes, cerca de 7.000 páginas) duas vezes e me preparo para começar a terceira. Amor Sem Limites (Time Enough
for Love), um clássico romance de ficção científica de Robert A. Heinlein, já frequentou minha cabeceira 4 vezes e já estou seco para ouvi-lo, agora em versão e-book gravado no original inglês.

Sou frequentador assíduo de Gramado-RS (14 vezes se contei certo), indo agora na semana que vem pela 15ª vez), Rio Quente Resorts em Rio Quente-GO (frequento anualmente desde 2000), Nova Friburgo-RJ (fui tantas vezes que lá fixei residência alternativa)... Bariloche já visitei 4 vezes e estou pronto à 5ª viagem, depende de alguns ajustes...

Sobre restaurantes então? Já sou "sócio-frequentador" de vários, desde o Solar do Tâmega quando trabalhava na Embratel (onde permaneci 32 anos), passando pelo La Bamba em Friburgo (28 anos) e Torninha no Jardim Icaraí/ Niterói (18 anos). Com várias opções em torno, sempre declinei da variedade e optei pela fidelidade.


Torninha Ristorante, Niterói.

Voltando ao tema, portanto, constato que para mim não é desagradável nem depreciativa a repetição de experiências agradáveis - físicas, mentais, visuais ou orais. Vai daí, que mal pode fazer a alguém ouvir duas ou três vezes a mesma estória, quem sabe sob nova ótica, em outro contexto de conversa ou com outra entonação?

Será uma característica do atual e vertiginoso modo de vivermos, que relega experiências passadas ao esquecimento puro e simples? O vício do Facebook, do Tweeter, acessados on-line via smartphones e tablets, torna o aqui e agora mais importante que o ontem e anteontem, não bastasse a velocidade com que o mundo evolui. Novidades pululam a cada dia ou semana, tornando obsoletos objetos e mesmo práticas que eram o must há um ano atrás. O que não dizer de décadas atrás...?

Teria eu, a partir de agora, que me monitorar para não repetir relatos nas amenas e outrora prazerosas rodas de papo? Putz, teria para isso que manter um registro de "o que já contei para quem", a ser consultado a cada ímpeto que tivesse de extravasar experiências passadas.

Não, essa é uma hipótese que beira o ridículo... Tem algo mais escondido nessas admoestações e críticas que nós, já na 3ª idade, sofremos quando somos pilhados em repetição. Mesmo considerando que a gradual perda de memória nos leva a esquecimentos diversos, que podem levar a uma ou outra repetição desnecessária, vislumbro na grosseira repreensão um oportunismo, uma chance de nos calar reduzindo-nos a meros espectadores de um mundo novo, no qual não nos reservaram lugar algum.

7 comentários:

Gusmão disse...

Pelo visto você está ficando senil. Também eu, pela mesma razão, passei a me repetir contando ene vezes as mesmas histórias.
As pessoas já dizem "de novo? Ah não!"
Abraços

Jorge Carrano disse...

Por muito menos era classificado por minha sogra como sistemático, conforme já contei aqui no blog.
Minha "fidelidade" está restrita ao barbeiro com o qual corto o cabelo.
Ao contrário, Freddy, gosto de variar os destinos de viagens e restaurantes.
Já me bastam a mulher e o time de futebol que não mudo.

Jorge Carrano disse...

Freddy,
Acabo de chegar do almoço, no Torna (pub gastronômico), na 5 de julho, onde fui pela primeira vez, diga-se.
É mais novo que o Torninha, não é?

Freddy disse...

Sim, Carrano. É a mais recente casa do grupo. Pouco depois de sua inauguração, a Trattoria Torna (R. Gavião Peixoto) encerrou as atividades, de modo que hoje apenas temos a Torninha (R. Nóbrega) e o Torna Pub (R. 5 de julho).
O Torna Pub herdou alguns pratos da Trattoria por pressão popular, mas não sei por quanto tempo, já que o público alvo das duas casas era muito diferente.

Abraços
Freddy

Riv4 disse...

Acho que Freddy está vendo fantasmas ... deve ser a fase (rs).

Interessante o post, porém minha leitura detectou uma certa confusão de patologias, pois não consigo relacionar a crítica a uma repetição de conversa com a releitura de um livro, estar casado com a mesma pessoa a X anos, rever filmes, etc.

Acho um "saco" mesmo uma pessoa ficar contando a mesma estória para as pessoas, mas isso é realmente um sintoma/característica dos idosos. Chato mesmo é quando a pessoa faz isso e não é idosa ! (rs).

Em minhas palestras/treinamentos, cito diversos "cases" como exemplos práticos de algum assunto, mas antes já aviso à platéia que talvez já tenham me ouvido falar desses "cases" em outras palestras, mas que são realmente bons exemplos e por isso os estou repetindo (estratégico, não ? rs).

Releio livros (e como), revejo filmes (e como), revisito lugares (e como), pois têm significado para mim e pronto. Simples assim.

Mas também aprecio a variação. Chego a alterar meus trajetos diários a pé simplesmente para apreciar novas cores, novas pessoas, novas calçadas, novos cheiros e sons.

Mas do post do Freddy, o que me tocou mesmo foi o último parágrafo :" vislumbro na grosseira repreensão um oportunismo, uma chance de nos calar, reduzindo-nos a meros espectadores de um mundo novo, no qual não nos reservaram lugar algum."

Aí está para mim a violência que ele está sentindo, e que não sei se a praticamos também com nossos avós e pais. Talvez hoje a intensidade dessa violência seja muuuuito maior, em função da massacrante velocidade da tecnologia da informação, do seu impacto em nossas vidas, da voracidade dos jovens em absorvê-la ... e nós, mais velhos, desistimos de entrar nesse ritmo alucinante, competitivo.E (nós) nos colocamos à parte, nos excluímos e consequentemente, somos excluídos.

Mas há muito mais por trás disso tudo. Basta perceber as propagandas na mídia, 99,9% desenvolvidas para atingir um público jovem. Em qualquer segmento !

É Freddy, bem vindo à 3ª idade. Um mundo diferente,mais contemplativo, mais sábio, andando devagar porque já teve pressa (quem disse isso mesmo ?). E deixe os jovens serem jovens.

Freddy disse...

Quem me saúda pela entrada na 3ª idade tem síndrome de Peter Pan. Pode isso? rs rs

Sobre o texto, parece que não me fiz entender muito bem. Não considero patologia a vontade de repetir causos. Torna-se patologia quando a pessoa repete e repete e repete sem se dar conta de o estar fazendo.

Se eu gosto de relembrar mentalmente passagens de minha vida, porque me seria "proibido" verbalizar essa repetição vez por outra numa conversa íntima?

Mas pelo jeito, essas nuances de interpretação só poderão ser esmiuçadas em conversas presenciais, por serem longas e polêmicas. Portanto...
Abraços
Freddy

Freddy disse...

Permitam-me retomar o tema...

Sabe-se que depois de certa idade, a memória recente começa a falhar. O que dizer, contudo, da precisão da memória passada?

Faço esse preâmbulo porque deparei-me com uma lembrança daquelas do fundo do baú. Estava a fazer palavras cruzadas e o tema era Júlio Verne. Qual era o personagem principal da estória "A volta ao mundo em 80 dias"? Eu li isso no início de minha adolescência. Junta uma letra aqui, outra ali, de repente me vem à lembrança o nome, facílimo por sinal (rs): Phileas Fogg!

É bem verdade que houve fixação na memória desse nome, junto com Passepartout, por conta de um joguinho de tabuleiro com o nome do livro e cujas peças se chamavam... phileasfogg (o peão) e passepartout (a pastilhinha)! Mesmo assim, como pode um sujeito (eu) taxado de ingresso na 3ª idade (daí repetir causos) se lembrar repentinamente de detalhes como esses, vivenciados há uns 50 anos atrás?

Aguardo as pedras.
Abraços
Freddy