“MEU CLUBE DE
CORAÇÃO...”
Identidade
clubística...
Calfilho
Carioca de Olaria, botafoguense de coração, niteroiense por adoção, copacabanense por predileção, parisiense e europeu por admiração ... 78 anos de idade, tentando chegar aos 80, se Deus ajudar.
Até
os primeiros anos da década de 60, quando o amadorismo já tinha sido totalmente
erradicado do futebol dos principais países do mundo, os jogadores ainda tinham
uma forte afinidade com os clubes em que começaram suas carreiras.
Segundo
li e pesquisei, o profissionalismo foi introduzido no futebol brasileiro no
início dos anos 30 do século passado. Por isso, alguns contestam o
tetracampeonato carioca do Botafogo (1932/33/34 e 1935). Houve uma cisão no
futebol do então Distrito Federal, alguns clubes continuaram com jogadores
amadores, enquanto outros aderiram de vez ao profissionalismo. A AMEA
(Associação Metropolitana de Esportes Amadores) até então tinha os clubes
amadores como filiados. Em janeiro de 1933 foi criada a LCF (Liga Carioca de
Futebol), tendo quase todos os clubes do Rio migrado para ela, menos o Botafogo,
que continuou na AMEA. Em São Paulo, o mesmo ocorreu, tendo a liga local, a
APEA (Associação Paulista de Esportes Atléticos) se dividido em duas, a
profissional e a amadora. Na Argentina, isso já ocorrera desde 1931 (informações
colhidas na internet, no site “Imortais do Futebol”). O Botafogo,
continuando na liga amadora, ganhou facilmente o campeonato. Na Copa do Mundo
de 1934, como a liga profissional não era reconhecida, o Brasil foi
representado por jogadores, em sua maioria, do Botafogo. Ainda em, 1934, o
Vasco, São Cristóvão e Bangu voltaram para a AMEA e, juntos com o Botafogo mudaram
o seu nome para FMD (Federação Metropolitana de Desportos), que passou a regular,
apoiado pela CBD, o profissionalismo carioca em1935, quando o Botafogo
conquistou seu inédito tetracampeonato consecutivo (material da mesma fonte).
Leônidas da Silva, o “Diamante Negro”, jogou pelo Botafogo nesse ano. Logo
depois, transferiu-se para o Flamengo.
A
transição do amadorismo para o profissionalismo não foi difícil, pois muitos
jogadores que disputavam a liga amadora já recebiam prêmios por vitórias, além
de outros “agrados”. A década de 40 talvez tenha sedimentado um pouco mais o
profissionalismo, mas os jogadores ainda permaneciam muito ligados aos clubes
que os formaram. Ainda eram raras as transferências de atletas de um clube para
outro, na mesma cidade onde atuavam. Para outros Estados, ainda mais. Para o
exterior, praticamente não ocorreram. A grande transferência entre clubes no
futebol carioca foi a de Ademir Menezes do Vasco para o Fluminense em 1945,
dando origem à famosa frase proferida pelo técnico Gentil Cardoso, então
dirigindo o Fluminense: “Contratem-me o Ademir e eu lhes dou o título”. O
Fluminense contratou Ademir e foi o campeão de 45. No ano seguinte, Ademir
voltou para o Vasco. Nessa década de 40, jogadores totalmente identificados com
seus clubes foram Heleno de Freitas, Nílton Santos (começando no Botafogo), Ademir,
Barbosa, Augusto, Eli (Vasco), Zizinho, Biguá, Bria (Flamengo). São os que me
lembro, apenas por ler ou ouvir falar.
Para
o exterior, soube apenas de Yeso Amalfi, que se transferiu em 1948 para o Boca
Juniors, no ano seguinte para o Penarol, em 1951 para o Nice (da França), em
1951 para o Torino, em 1952 para o Mônaco, tendo encerrado a carreira no
Olympique de Marseille em 1959 (fonte: Wikipedia).
Na
década de 1950, depois da Copa do Mundo realizada no Brasil, o profissionalismo
enraizou-se de vez no futebol brasileiro. Mas, as transferências eram raras e,
até consideradas como “traição” por parte dos clubes e jogadores envolvidos.
Lembro-me bem de uma, que ficou bem marcada em minha memória: no início da
década, um jogador da base (os antigos juvenis) do Botafogo, Joel, foi aliciado
pelo Flamengo, que o contratou, desrespeitando seu coirmão que havia formado o
jogador. Joel teve uma carreira vitoriosa no Flamengo, participando do time
tricampeão de 1953/54/55, e foi convocado para a Copa do Mundo de 1958, sendo
titular nas duas primeiras partidas, contra a Áustria e a Inglaterra. Na
terceira e decisiva partida da fase eliminatória, Garrincha entrou em seu lugar
e “acabou” com o jogo, sendo o titular até o final da competição, vencida pelo
Brasil. Na Copa seguinte, Joel nem foi convocado, sendo Jair da Costa o reserva
de Garrincha, que foi eleito o melhor jogador da equipe bicampeã mundial. Foi a
“vingança” do Botafogo contra a “traição” do Flamengo e de Joel.
Nessa
década, ainda os jogadores permaneciam muito tempo em seus clubes, mesmo, às
vezes, não tendo sido formados por eles. Assim, o Fluminense de Castilho,
Píndaro, Pinheiro, Clóvis, Vítor, Lafayette, Telê, Orlando Pingo de Ouro,
manteve esses mesmos jogadores por quase toda a década em sua equipe. O Vasco
de Barbosa, Augusto, Eli, Danilo, Jorge, Friaça, Maneca, Ademir, Jair da Rosa
Pinto (que se transferiu para o Santos no início da década). O Flamengo de
Garcia, Tomires e Pavão; Jadir, Dequinha e Jordan; Joel, Rubens, Índio, Evaristo
e Esquerdinha. O Botafogo de Osvaldo Baliza (depois Gilson), Gérson e Santos;
Arati, Pampolini e Didi; Garrincha, Edson, Paulinho, Quarentinha e Neivaldo. O
América, de Osny, Dimas, Ranulfo, Oswaldinho, Alarcon, João Carlos, Maneco. O
Bangu, de Ubirajara, Mario Tito, Zizinho, Ari Clemente e tantos outros. A
garotada da época, eu aí incluído, sabia de cor a escalação de todos os times
cariocas. Até do Madureira, com Irezê, Bitum e Weber (muito mais tarde, juiz de
Direito na antiga Guanabara), Frazão, e outros. O Canto do Rio de Carango e
Jairinho. O Olaria, de Olavo “Sarrafo”. O São Cristóvão, de Santo Cristo etc...
Vai
perguntar hoje a um garoto de 10 anos qual a escalação do seu time: vai te
dizer uma num dia, outra no mês seguinte, mais outra completamente diferente um
ano depois... Sobre a seleção brasileira, nem se fala...
Enfim,
o profissionalismo foi avassalador...
Recordo-me
que naquela década de 50, a grande transferência de um jogador brasileiro para
o exterior foi a de Julinho Botelho da Portuguesa de Desportos de SP para a
Fiorentina, da Itália. Julinho disputara a Copa do Mundo de 1954 pela seleção
brasileira e, em 1955, transferiu-se para o futebol italiano. Ponta direita de
rara habilidade, foi convocado por Feola para a Copa do Mundo de 1958,
juntamente com Joel, do Flamengo. Num gesto de rara humildade e grandeza, não
aceitou a convocação, dizendo que não tomaria o lugar de um jogador que
estivesse jogando no Brasil. Resquício forte do amadorismo, quando defender a
seleção brasileira significava defender as cores do Brasil... Igual aos dias
atuais, não lhes parece?
Feola
não gostava de Garrincha, por achar que ele “driblava demais, sem produtividade
para a equipe...”. Com a recusa de Julinho, foi quase obrigado a convocar o
“anjo das pernas tortas”, já que a “grita” popular era muito forte... Vejam só
o absurdo: quase deixamos de ser campeões do mundo em 1958, não fosse o ato de
grandeza de Julinho...
Dino
da Costa e Vinicius (Leão), atacantes do Botafogo, também foram duas outras
transações marcantes do futebol brasileiro na década de 50. Foram jogar em
equipes italianas, o Milan foi uma delas, a outra não me recordo... Evaristo
foi para o Barcelona e, lembro-me bem da festa que a cidade preparara para ele,
quando eu passei por lá, em fevereiro de 1957, numa viagem de navio em direção
a Nápoles... Paulinho Valentim e Orlando Peçanha foram para o Boca Juniors, da
Argentina...
No
Brasil, internamente, duas transferências marcantes: a de Didi, do Fluminense
para o Botafogo; a de Gilmar, do Corinthians para o Santos... ajudem-me a
lembrar de outras...
Já
na década de 60, Brasil bicampeão do mundo, os jogadores brasileiros
valorizaram-se rapidamente. Transferência milionárias para o futebol europeu,
que, constatando a superioridade da individualidade brasileira sobre os rígidos
esquemas de seus países, decidiram importar em massa os “craques” tupiniquins:
Amarildo para o Milan; Vavá, para o Atlético de Madrid; Didi, para o Real
Madrid, Jair da Costa para a Internazzionale, Dino Sani para o Boca Juniors, Joel Martins para o Valência... bem, quem
mais?
Pelé
ficou no Santos, recusando propostas milionárias. Garrincha permaneceu no
Botafogo até 1966, quando preferiu deixar o clube, indo para o Corinthians,
porque não conseguia recuperar-se de uma violenta lesão nos joelhos. Nílton
Santos, em clubes, só vestiu a camisa do Botafogo. Gilmar, Djalma Santos, Zito,
Pepe, permaneceram em seus clubes até abandonar o futebol, ou transferiram-se
para equipes menores apenas para encerrar a carreira e ganhar um dinheirinho
extra. Lembro bem, já no final da década de 60, que, Gerson, morador de
Niterói, recusou propostas da Europa por detestar viajar de avião...
As
décadas seguintes, após a conquista do tricampeonato mundial em 1970, marcaram,
a meu ver, o declínio do futebol brasileiro. Mesmo conquistando mais dois
outros títulos mundiais, a qualidade do nosso futebol foi caindo a olhos
vistos. As transferências para a Europa e, depois, para o Japão e para o resto
do mundo multiplicaram-se em velocidade exponencial. Hoje, o que vemos, são
jovens com menos de quinze anos sendo recrutados pelo futebol europeu e lá
aprendendo a jogar futebol como eles. Acabaram-se a improvisação, o jogo de
cintura, a boa molecagem do futebol brasileiro...
Grande
culpa desse declínio cabe a nós mesmos... acabando com os campos de futebol que
existiam pelas cidades, com os terrenos onde animadas peladas eram jogadas,
acabou-se também a improvisação, o gosto pelo futebol bem jogado... Nossos
campinhos transformaram-se em prédios de cimento, e com eles nosso futebol foi
afundando... Lembro-me bem que, só em Niterói, joguei nos campos do Niteroiense,
Ypiranga, Fluminense, Vienense, Henrique Lage, Manufatora, Cruzeiro, Country,
Caio Martins. Quantos deles existem atualmente? Hoje, as crianças começam a
jogar futebol de salão (ou futsal), que nunca foi a mesma coisa que o futebol
de campo... Quando vão para este, já estão viciados com o pouco espaço que o
salão lhes proporcionou, obrigados a passes curtos e rápidos, e são incapazes de
levantar a cabeça, procurar um
companheiro desmarcado lá na frente e fazer um lançamento... Não, bola pro lado, que “não quero ficar com a
responsabilidade de tentar uma jogada de profundidade, uma jogada mais aguda,
de tentar o drible... afinal, se perder a bola...”
Dá
pena de ver a seleção brasileira em campo, atualmente... conheço apenas um ou
outro jogador que esteve por algum tempo num clube brasileiro... a grande
maioria é desconhecida ou só esteve aqui na base de nossos times... Não são
maus jogadores, mas nem parecem brasileiros... vestem a camisa da seleção como
vestem a camisa de seus clubes na Europa, sem amor, sem identidade com a
mesma... alguns até se naturalizam europeus para poder jogar pelas seleções dos
países de seus clubes... Os jogos do campeonato brasileiro também são duros de
assistir... A comparação com o futebol europeu é inevitável e saímos
perdedores, de longe, em qualidade técnica... Hoje, é muito mais agradável
assistir um jogo dos campeonatos europeus pela TV do que outro do
Brasileirão... Por isso, em nossas ruas já vemos algumas crianças (e até
adultos) desfilando com camisas do Real Madrid, do Barcelona ou de uma seleção
europeia...
Vou falar apenas de dois exemplos
mais recentes que conheço e que, por acaso, são do meu clube: o Túlio, pouco
conhecido meio de campo do Botafogo na década passada, passou um tempo jogando
fora do Brasil e, quando voltou, procurado por outros clubes, disse:
“--
Primeiro, quero ouvir a proposta do Botafogo, que é meu clube do coração”.
Acabou
voltando para o clube, apesar de ter recebido uma proposta um pouco mais
elevada de outra equipe.
O
outro exemplo é Lucio Flavio, durante alguns anos meia armador do Botafogo,
que, depois de ter parado de jogar, ao receber um convite do clube para
trabalhar na Comissão Técnica, aceitou imediatamente.
Parabéns
aos dois, amor à camisa não se demonstra apenas no momento da assinatura do
contrato, quando o escudo do clube é invariavelmente beijado. Esse amor é muito
mais importante quando o jogador deixa o clube, precisa dele, mesmo quando não
mais joga futebol...Por isso, os dois atualmente, fazem parte da Comissão
Técnica do Botafogo... Não foram jogadores excepcionais, apenas medianos, mas
respeitam e têm carinho pelo time que defenderam...
O
amor ao clube, coisa rara...
Os
jogadores atuais trocam de camisa, como quem troca... de “camisa...”.