Já contei aqui no blog que nós líamos, na infância (entre os 9 e 12 anos), a revista seleções do Reader’s Digest. E também mencionei a seção “Meu tipo inesquecível”
Pois bem. É chegada a hora de falar de meus tipos inesquecíveis, amigos ou não, que me impressionaram pela inteligência e/ou cultura, ou pela capacidade de se relacionar, ou pelo brilho profissional, enfim, por um traço qualquer de sua personalidade.
Todos são, ou foram (pode ser que alguns tenham morrido), vencedores.
Devo ter algo que consegue conquistar a simpatia e o respeito de pessoas especiais, pela inteligência, cultura e caráter.
A ordem de citação não hierarquiza importância ou mais estima ou respeito pelo personagem. Trata-se de uma ordem aleatória.
1) Caio Assis de Aragão
Até onde sabia, havia iniciado sua carreira profissional como advogado da General Electric (GE) empresa de capital americano que fabricava desde lâmpadas até turbinas para aviões.
Foi, também, Procurador da Previdência Social.
Da GE, transferiu-se para a Cia. Fiat Lux, de Fósforos de Segurança, maior fabricante de fósforos do país, que detinha, na época, 80% do mercado, por opção. Era necessário descaracterizar monopólio (
trust). Foi, na Fiat Lux, Diretor Jurídico e Administrativo.
Mais tarde, convidado, transferiu-se para a Xerox do Brasil, que havia pouco se instalara no país, como Diretor Superintendente. Por mera coincidência, fui uma das primeiras pessoas a saberem de sua ida para a Xerox. Estava em São Paulo, no Hotel Jaraguá, a serviço da Fiat Lux, e também ele estava hospedado neste mesmo hotel. Casualmente estávamos juntos quando ele recebeu, na recepção, o recado de que o Sergio Gregory (presidente da Xerox), telefonara e pedira um retorno da ligação. Era para negociar a ida do Caio para a firma americana.
Extremamente elegante, no trajar e na postura, e muito sedutor, estava sempre disposto a prestar favores aos seus pares e pessoas mais bem posicionadas social e economicamente.
Este foi o traço de sua personalidade que fez dele um dos meus tipos inesquecíveis, qual seja, atuar jogando com o tráfico de influências.
É óbvio que a cada favor que ele prestava, estava abrindo uma linha de crédito com o favorecido. Nada a condenar.
A passagem que mais me recordo, e me envergonho, aconteceu quando eu era estagiário no Departamento Legal e ele, como já mencionei, Diretor Jurídico.
O presidente da empresa tinha terrenos em Niterói, na região oceânica, e surgiram problemas quanto ao imposto territorial devido. Naquela época a Prefeitura de Niterói era um caos absoluto (surpreendentemente já foi pior do que é). Pois bem, como eu morava em Niterói, coube-me a tarefa de ir a PMN - nada mais lógico - para tentar solucionar a pendência. Demorei-me mais do que o normal, em face do precário atendimento na Prefeitura. Cheguei muito tarde no escritório da Fiat, na rua Visconde de Inhaúma, no Rio, e antes mesmo que eu me dirigisse a sala onde trabalhava, a secretária dele me abordou dizendo que ele queria falar comigo com urgência. Estava brabo. Suponho que o Jules Poncinet, então presidente da Fiat Lux, tenha pedido uma resposta sobre o caso e ele não a tinha.
Perguntou, antes mesmo se eu resolvera ou não o caso, porque eu demorei tanto. Respondi falando das dificuldades, até mesmo para o funcionário encontrar os registros dos terrenos, que dirá calcular, naquelas antigas máquinas de somar, o valor dos impostos com multa e juros.
Bem, aí ele perguntou, “e porque você não me telefonou?” Respondi que a ligação telefônica custaria Cr$ 0,50 centavos. Veio então o comentário que não esqueço: “e minha tranqüilidade não vale cinquenta centavos?”.
Para situar melhor às circunstâncias, vale dizer que naquela época, anos 60, não havia celulares. Nem orelhões. As ligações telefônicas de favor, eram feitas em bares, botequins ou farmácias, que cobravam pela ligação local 0,50 da moeda da época. E eu, com baixo salário, não podia me dar ao luxo de gastar os 0,50.
Anos depois, inclusive por indicação dele, fui guidado a gerente e as coisas melhoraram.
Não faz muito tempo, fui localizado pela ex-secretária dele (na Fiat Lux e na Xerox), através da internet. Trocamos alguns mails, mas não falamos do Caio, a quem ela servia com uma fidelidade impressionante. Era difícil não respeitá-lo e estimá-lo.
2) Mario Castelar da Silva
O Castelar é um caso especialíssimo. Tinha tudo para não dar certo. De família pobre, muito pobre mesmo, conforme ele mesmo revela até hoje, superou todos os obstáculos que encontrou em sua ascensão social e profissional, com base na sua inteligência, memória, facilidade de expressão, raciocínio rápido, disponibilidade para aprender e, principalmente, capacidade de se relacionar com gente. Com humildade estudada, conquista as pessoas pela simplicidade.
Em face de sua boa cultura geral e de sua facilidade de comunicação, transita bem nos meios mais elitizados, cultural e socialmente, e também tem conversa para pessoas mais humildes, o chamado povo.
A simplicidade planejada, mascara seu bom gosto pelas artes, boas comidas e bebidas.
Foi, quando estudante, orador laureado e escrevia suas poesias. Foi, ainda, professor na Escola Superior de Propaganda e Marketing.
Exerceu cargos diretivos em grandes agências de publicidade, como a Norton e outras, e empresas nacionais e multinacionais como o Grupo Grupo Matarazzo, Rhodia têxtil e Nestlé.
Hoje é palestrante e consultor em marketing, e autor de livros relacionados à área.
Dentre suas tiradas, que demonstram seu raciocínio rápido e espírito criativo, uma das melhores aconteceu quando vínhamos de São Paulo para Niterói, pela Dutra, e um ônibus da Cometa, no sentido contrário, acendeu o farol alto, muito forte, que praticamente o cegou, estando ao volante: “pô, o cara ligou o sol na minha cara”.
Acompanhei, desde a Cia Internacional de Seguros, onde começou como office-boy, toda a trajetória profissional do Castelar. Fui responsável, e talvez ele jamais me perdoe por isso, pela sua ida para o Grupo Matarazzo.
Ele, todavia, foi responsável pela minha ida para São Paulo, o que também não perdôo.
Somos, que sortudo sou, amigos leais.
3) Marcos Telles de Almeida Santos
Certamente uma das pessoas mais inteligentes e cultas que conheci.
Poliglota, falava inclusive um pouquinho de holandês, eis que foi casado com uma nativa daquele país.
Lembro que, certa feita, fui incumbido de recepcionar, na Portaria, um diretor de firma suíça, fabricante de teares modernos, que dispensavam a lançadeira de acionamento eletro-mecânico.
Evidentemente que, com o meu parco inglês (acabara de concluir o básico do Yazigi), estava me saindo com dignidade, naquela base do muito prazer, sente-se por favor, o Dr. Marcos já está a caminho e outras amenidades, quando o Marcos inrompe na sala, saúda alegremente, “bom dia!” e pergunta, “que idioma estamos falando?” Para ele seria simples, mesmo que a opção fosse pelo alemão. A pergunta nada tinha de afetação ou esnobismo, era o jeitão brincalhão dele.
Mas não é esta a maior tirada do Marcos ou o fato mais interessante que tenho registrado na memória.
Grande sinal de sua agilidade mental e capacidade de ironizar sem ferir, deu-se numa reunião de excutivos, a qual estava também presente um trainee, formado em engenharia, filho de um importante industrial. Este estagiário, à horas quantas, durante uma narrativa de um dos gerentes presentes, deu um bocejo, que embora discreto foi percebido pelo Marcos, que presidia a reunião (ele era o Diretor Geral). Seu comentário veio rápido e certeiro como uma flecha: “Américo, você não imagina o quanto estamos invejando você”.
Lógico, numa alusão a que poderia ser fruto de uma noite mal dormida, em função de programa madruga a dentro.
Mas surtiu o efeito admoestador que cabia.
Era preciso estar sempre muito ligado ao conversar com ele, pois seus apartes eram muito sutis, fruto de uma inteligência viva e ótima cultura geral.
O Marcos tinha rotinas das quais não abdicava; a primeira coisa que fazia logo cedo, era jogar tênis no Paulistano, que ficava muito perto de seu apartamento de cobertura, localizado em Cerqueira Cesar (Jardins?).
Era dos poucos sócios do tradicional clube, que tinha uma quadra a sua disposição por uma hora diariamente. Com horário estabelecido. E escolhia os adversários.
Dono de uma selecionada pinacoteca, dirigia uma Variant (espécie de camionete) amarelo ovo, e acompanhava novelas na TV. Este era um lado fascinante de sua personalidade. O contra-senso. Lamento demais termos perdido contato, pois ele foi um excelente amigo. Quando deixei o Grupo Matarazzo e retornei para Niterói, ofereceu para mim e para Wanda, como sói acontecer com pessoas de alta nobreza, um requintado jantar em seu elegante apartamento.
4) Victor José Velo Perez
Este espanhol, valenciano, era ou é (espero que esteja vivo) outra mente diferenciada com quem tive a sorte de conviver.
Morava no bairro do Paraíso, em São Paulo, numa casa de 4 pisos. Um ao nível da rua, de acesso ao imóvel, com salas, cozinha, etc. Outro, acima deste, levava aos dormitórios.
Nos dois abaixo no nível da calçada, ficavam a garagem e, por último, uma adega de invejar.
Esta adega, à qual tive a felicidade de freqüentar, era um espaço bem amplo, cujo acesso se dava através de uma porta de madeira maciça, grossa, e por isso pesada.
No seu interior, uma luz tênue, encimava uma mesa redonda, cujo tampo também era de madeira, na verdade um segmento de tronco de árvore de grande diâmetro.
O cheiro no interior desta adega era qualquer coisa de estimulante. Uma mistura dos restos de bebidas (licores, conhaques e vinhos), que por vezes derramavam na mesa, com os embutidos, presuntos e salames pendurados no teto, mas ao alcance das mãos.
Havia os escaninhos adequados para guarda dos vinhos, e locais para conhaques e licores.
Tive o privilégio de ser convidado, com a Wanda, para um jantar inesquecível, composto de sopa de frutos do mar, seguida de
paella valenciana, doces, licores (digestivos) café e chocolates/bombons, tudo
comme il fault.
O Victor, com formação acadêmica em física (concluído na USP), chefiava o departamento de engenharia de manutenção de fábricas têxteis, e chegou à vice-presidência do Grupo.
Amante de música clássica (tem uma irmã que é cantora lírica, com discos gravados) é um anfitrião perfeito.
Conhecedor profundo da história de seu país de origem e de assuntos religiosos, sabia tudo sobre jesuítas, agnus dei, templários, etc.
Sua marca maior, para mim, era a capacidade de explanar com linguagem clara, assuntos tão áridos quanto manutenção de máquinas e equipamentos industriais, conseguindo manter viva a atenção dos ouvintes, pela maneira de explicitar fazendo piadas, comparações esdrúxulas e dramatizando situações corriqueiras.
Organizadíssimo, enriquecia suas palestras (várias) com gráficos, planilhas, etc.
Cresceu no Grupo Matarazzo a custa de muito trabalho sério e enorme capacidade de convencimento.
O fato ligado a ele mais curioso de que me lembro, foi quando, ainda encarregado da área de engenharia, teve a incumbência de fazer a implosão do casarão dos Matarazzo na Av. Paulista. A Luiza Erundina fôra eleita prefeita e a primeira mediada que adotou foi desapropriar o palacete. Aquela velha e surrada história de capital ser inimigo do trabalho, este ranço comunista, levou a prefeita recém eleita a adotar esta atitude, posto que os Matarazzo eram o símbolo maior, no Brasil, do capitalismo.
Pois bem, encarregado da implosão, até para comprometer a desapropriação, mas sem qualquer experiência na matéria, o que ele conseguiu foi destruir, explodindo, e não implodindo, apenas uma parte da mansão.
Eu já não trabalhava no Matarazzo, mas morri de rir com esta história contada por ele mesmo. Grande Victor. Também faz muita falta o contato com ele, sempre enriquecedor.
5) Jorge Carrano e Ricardo Carrano
And last, but not least, na galeria de meus tipos inesquecíveis, estão meus filhos Jorge e Ricardo. Se não bastasse o vínculo afetivo natural, porque biológico, são, ambos, pessoas que me encantam por suas histórias de vida.
Ultrapassaram a barreira intelectual e cultural dos pais, que poderia ser limitadora, para, com esforços e méritos pessoais, conseguirem êxito como profissionais e, acima de tudo, como pessoas, seres humanos dignos desta classificação, pela retidão de caráter, pela perseverança, pela honestidade de propósitos e meios utilizados para alcançar o sucesso.
Inteligentes e de cultura geral muito acima da média das muitas pessoas com as quais convivo ou convivi, são tipos inesquecíveis. Para mim e para tantos quantos tenham a felicidade de conviver com eles.
Pai e tio que encherão de orgulho aos meus netos, quando estes forem capazes de avaliar a importância daqueles.
Contei, sobre os outros tipos inesquecíveis mencionados nesta série, casos curiosos, situações cômicas, etc.
Não o farei em relação aos “meninos” eis que os assuntos de família serão objeto, assim espero, de trabalho especial.
Numa próxima opotunidade, falarei de tipos igualmente inesquecíveis, mas pela bizarrice, pelo inusitado do comportamento ou vocabulario.