É inimaginável, numa sociedade civilizada, viver sem um poder
Judiciário. Com efeito, não há organização social que resista sem arcabouço de
normas de comportamento, disposição de direitos e deveres.
A normatização é fundamental e sem um órgão com poder
coercitivo, teríamos a lei do mais forte, o império da selvageria. As normas
morais e éticas não bastam porque não há sanção quando violadas. Não são
exigíveis.
Certo, sempre se pode evitar a proximidade com aquele que não
tem escrúpulos de natureza moral, mas a sociedade, como um todo, não tem como
reprimi-lo.
O poder judiciário é hierarquizado. Temos as diferentes
instâncias, que têm suas competências estabelecidas na Constituição Federal, e
em cada grau de jurisdição como regra geral, em razão do lugar, em razão da
matéria ou em razão da pessoa.
Exemplificando, se o imóvel está localizado em Niterói, as
ações a ele relacionadas devem ser propostas na comarca de Niterói. Se você pretende entrar com reclamação contra
seu empregador, deve procurar a Justiça do Trabalho e, finalmente, se a
hipótese é levar a julgamento em parlamentar federal ou o presidente da
República, o foro competente será o STF.
Temos aí, grosso modo, exemplos de competência em razão do
lugar, da matéria e da pessoa.
No topo da pirâmide do Judiciário, pirâmide esta formada por
juízes e tribunais estaduais e federais, está o Supremo Tribunal Federal. O
STF, nas sábias palavras de Rui Barbosa, tem o direito de errar por último.
Sim, porque é impensável
um órgão julgador que seja infalível (porque composto por pessoas),
mesmo sendo este órgão a mais alta corte de justiça do país.
Bem, dito isto penso haver deixado claro que não sou contra o
poder judiciário. Nem pensar.
Todavia, algumas decisões do Judiciário me incomodam
sobremaneira, porque por vezes são
interferências na vontade da maioria das pessoas.
Teria vários exemplos mas vou me fixar em dois apenas.
Você mora num prédio que tem um regulamento que não permite aos
moradores a posse de animais. Mas chega um novo morador que tem um labrador.
O Síndico (administrador do prédio), o procura e informa que ele
deverá se desfazer do animal ou mudar do edifício. Que faz o dono do cachorro? Com apoio na Constituição que
assegura a todos acesso ao judiciário para defesa de direitos, entra com ação judicial para obter decisão favorável que lhe assegure manter o animal, mesmo que contra
disposição expressa do regimento interno do edifício.
E conseguirá a sentença favorável (jurisprudência
predominante), ressalvadas as premissas de que seja o animal de pequeno porte
e que não cause transtorno aos demais moradores.
Ora vejam só, um pretenso direito individual (de ter o
cachorro), prevalece sobre a vontade de todos os demais moradores. E tanto isto
é verdade que os que lá viviam aprovaram, em decisão colegiada, numa
assembleia, a norma que proíbe a presença de animais no prédio.
O caso permitiria outras abordagens, tais como se um labrador
é de pequeno porte. Se causaria, ou não, transtorno para os demais moradores.
Um labrador pode até ser dócil, mas pode assustar. Participei
de um caso envolvendo esta raça de animal. Diariamente seu proprietário o
levava a passear e fazer suas necessidades fisiológicas. Mas como natural a
ansiedade do animal naqueles momentos
era muito grande. Por isso, mal era aberta a porta do apartamento ele saia com
pressa, precisando ser contido pelo dono, que segurava a guia presa na coleira.
Mas o cachorro fazia força para avançar mais rápido e como o
piso do hall de elevadores era liso (granito polido), suas patas deslizavam
como em desenho animado. Vai daí que num certo dia, a mãe da moradora do mesmo andar,
chegando para visita à filha, mal abre a porta do elevador, se depara com aquele
cachorro avançando (embora contido), com as patas escorregando fazendo barulho,
e se assusta. Era uma senhora de seus 82 anos que, embora hígida, não possuía
suficiente equilíbrio; com isso caiu e, do tombo, resultou fratura do colo do
fêmur.
Que drama, não? A história é real.
Outra intromissão, a meu juízo indevida e infeliz, via
sentença, é quando assegurado a um
pretendente qualquer, o ingresso no quadro associativo de algum clube mais
seletivo, daqueles que utilizam o sistema de bolas (pretas ou brancas), que
devem ser atribuídas pelos demais associados.
Ora bolas (sem trocadilho), acho que um grupo de pessoas tem todo o direito de
organizar um clube e estabelecer que o ingresso a este clube seja restrito a
pessoas com os mesmos gostos, os mesmos objetivos o mesmo comportamento social.
Em recente crônica, Martha Medeiros abordou a questão das pessoas que são facilmente identificáveis como da sua comunidade. São aquelas que ela chama de "minha turma", e que "são as que falam sua língua, enxergam o que você vê, entendem o que você nem verbalizou. São os que acham graça das mesmas coisas, que têm o mesmo repertório. São as que não necessitam de legendas e estão na mesma sintonia e cujo histórico bate com o seu."
E muitas vezes um corpo estranho, e agora sou eu quem quem o diz, é mantido nestes organismo (sua turma) na base de inibidores de rejeição, caracterizados como liminares e sentença judiciais.
Quem discorda desta possibilidade de estabelecimento de turmas, pensa logo em discriminação racial ou social,
mas acontece que a restrição pode ter por meta a manutenção de um certo comportamento. Fico imaginando alguém que comprou uma casa num condomínio
privado, de luxo, pensando em ter tranquilidade, segurança e convívio com
pessoas educadas , e de repente, não mais que de repente, um pagodeiro ou um
jogador de futebol compra a casa vizinha no condomínio. E este pagodeiro
resolve promover todo final de semana, uma roda de samba, convidando um monte de
sambistas para tocar pagode e cantar. Ou
o jogador convida seus amigos da comunidade onde residia para tomar banho de
piscina e promovem a maior algazarra.
Pagodeiros e jogadores de futebol merecem respeito. Devem ter
os mesmos direitos porque somo todos iguais.
Mas e aqueles que não gostam de pagode e porque preferem uma
vida calma, por vezes até por necessidade (idade, doença) foram morar naquele
condomínio que acabou descaracterizado?
Sou contra discriminações (em termos), mas sou também a favor
de agrupamentos sociais (em prédios, clubes, etc) de iguais. Pessoas que
prefiram ler e discutir literatura, ou prefiram ópera, têm que ter o direito de
manter seus guetos.
Lembro que, há muitos anos, tendo comparecido a um coquetel
no Clube Harmonia de Tênis, em São Paulo, dos mais fechados e requintados à
época (nem sei se ainda existe), ouvi numa roda na qual estavam dois associados
que o Silvio Santos estaria pleiteando adquirir um título, e a maioria dos sócios
era contra. Por sua origem pobre, de camelô. Dinheiro ele tinha, mas não tinha
berço. Já imaginaram o Silvio jogando aviãozinho feito com cédulas de vinte reais em plena festa de réveillon do Harmonia? Quem quer dinheiro?
Os direitos individuais precisam de tutela, mas os desejos e
vontades das coletividades também
precisam ser respeitados. E o Judiciário o mais das vezes favorece o
individual.