7 de junho de 2018

RESSOCIALIZAÇÃO


Imagem via Google

Os defensores dos indultos concedidos a presidiários, de todas as estirpes, acham que a medida é importante para ressocialização dos apenados.

Estou seguro que vocês já leram ou ouviram nos noticiários casos de indultados, no Natal, Dia dos Pais ou Dia das Mães, que não retornaram as unidades prisionais ao final do prazo? Muitos casos!

O que falta? Em primeiro lugar critério, controle rígido. Controle não quanto à concessão do benefício, digamos, humanitário, mas quanto aos que efetivamente se enquadrariam nas regras que regulam o “direito ao indulto”.

Vou lhes relatar caso verídico, do qual participei na qualidade de um dos protagonistas.

Era gerente administrativo de uma cadeia de supermercados, em São Paulo. Esta gerencia abrangia a área de recursos humanos.

A empresa era uma das patrocinadoras de programa esportivo na Rádio Gazeta. Um dos analistas esportivos, um sergipano muito popular, acabou se aproximando da administração além da relação anunciante-veículo.

Deixarei de lado detalhes desta aproximação pois não interessam ao caso sob relato.

O fato concreto é que num determinado dia, através de comunicação interna, um colega gerente da área de compras, disse que o aludido comentarista esportivo estava na sala dele (eram amigos) e queria conversar comigo.

O radialista estava pleiteando uma vaga para um conhecido e foi informado que precisaria tratar comigo deste assunto.

Embora não tivéssemos uma ligação muita estreita, ele resolveu conversar comigo. Até aí morreu neves* não é mesmo? A situação é corriqueira, se você é diretor ou gerente de uma empresa, em especial se for da área de recursos humanos, recebe muitos pedidos de emprego.

Ele chegou a minha sala, extrovertido como sempre, mas embaraçado para entrar no assunto.

Resumo a situação. Era mesmo um pedido de emprego. Só que tinha um dado não muito comum. O candidato era um criminoso que estava em liberdade condicional.

Quando me refiz da surpresa (era fato novo para mim), resolvi aprofundar. Que crime ele cometeu? Tem família? Qual a escolaridade dele? Experiência anterior?

Reto e direto: não tinha qualificação alguma, senão para trabalho braçal; a família vivia no Nordeste; seu crime era assalto.

Perguntei: ele matou alguém? - Não ele jura que nunca matou ninguém, nem seus comparsas, embora tenha participado de assalto à mão armada. A família dele era conhecida da família do radialista esportivo lá em Sergipe.

Para decidir precisava dar tratos a bola e pensar numa estratégia. Disse para que o candidato viesse no dia seguinte, procurasse por mim pessoalmente.

Ele chegou. Um nordestino típico na cor da pele (queimada). Alto e forte. Vocabulário pobre e limitado.

Mandei preencher a ficha de praxe para então poder entrevista-lo. Confirmou que foi assaltante, nunca matou ninguém. Queria viver uma vida limpa e deixar a criminalidade.

Estamos nos anos 1970. Eram outros tempos. Os brasileiros éramos “90 milhões em ação” (lembram da música da seleção?)

Fiquei com a ficha dele: sem escolaridade e sem experiência funcional. Era saudável, forte.

Mandei que voltasse na semana seguinte. Não queria pegar o pião na unha. Ficar com o problema sozinho. Assumindo unilateralmente o risco. Mas queria ajudar o “cabra da peste” por alguma razão não definida. Acho que o jeito franco e direto.

Minha estratégia foi, em primeiro lugar, conversar com o chefe da segurança patrimonial, um coronel reformado, da Polícia Militar de São Paulo. Expus a situação, ele ouviu, achou um grande risco, mas topou endossar minha decisão.

Fui então ao diretor da empresa ao qual eu reportava, relatei toda situação, inclusive que já havia trocado ideia com o chefe da segurança. Ele - diretor - conhecia o tal comentarista esportivo de quem partiu o pedido, e não colocou objeção. Falou: problema seu.

O passo seguinte seria como colocar o novo empregado numa determinada loja (não poderia ser em qualquer uma) sem que o gerente da filial pudesse opinar e aprovar a contratação. Não era conveniente que muita gente estivesse a par do caso.

Minha preocupação e a do coronel da segurança era a seguinte: qualquer furto ocorrido na loja ele seria o primeiro suspeito.

Liguei para o gerente da loja (na capital) eleita como a mais indicada, com muita movimentação de entrada e saída de mercadorias, ele poderia ser lotado no depósito. Era uma loja grande na Zona Oeste.

Precisei fazer crer ao gerente da loja que eu tinha interesse pessoal na contratação do ajudante a fim de viabilizar a quase imposição de que ele fosse admitido como ajudante de depósito, sem interferência da administração da loja.

Deu tudo certo. Sem suspeitas. O coronel monitorava através de sua equipe formal e informal** e o conceito do cara era bom no local de trabalho. Caladão, com disposição para o trabalho, pontual a assíduo.

Que alívio! Corria tudo bem e já praticamente havia me esquecido do caso quando um belo dia o Ezequiel (este era o nome dele) apareceu na portaria do prédio da administração para falar comigo.

A recepcionista anunciou pelo interfone, que ele estava lá querendo falar comigo “pessoalmente”. Quando caiu a ficha e me lembrei do episódio mandei que ele entrasse e subisse.

Que houve Ezequiel? - “Dotô” Jorge, vim pedi demissão ao sinhô” (imaginem um sotaque ainda carregado de nordestino). Por que, arranjou trabalho melhor?

Não era nada disso. No tom de voz mais baixo que conseguia fazer contou que foi localizado por velho parceiro de crimes que lhe propunha planejar um roubo lá na loja em que ele trabalhava por entender que haveria alguma facilidade para entrar.

Em suma, a proposta era ou ele participava do golpe ou iria se arrepender. Ele temia fosse tornado público o caso. Quando de sua admissão recomendei muito de que ele não poderia falar com quer que fosse sobre seu passado.

Senti de um lado um grande alivio, eis que ficaria livre de um cutelo sobre meu pescoço. Não tinha dúvida de que havendo algum envolvimento do Ezequiel em algum delito eu seria cobrado.

Por outro lado lamentava que a chance que ele tivera de se reintegrar na sociedade estava prejudicada.

E ele estava amargurado, porque quando indaguei se ele estava disposto a voltar a se aliar ao antigo comparsa, me lançou um olhar de desespero. Como se indagasse, que alternativa tenho?

A demissão dele foi formalizada, aproveitei que era um dos frequentes períodos de redução do quadro de pessoal e pedi ao gerente da loja (outra vez assumindo como interesse pessoal) para que ele fosse incluído na lista dos que seriam dispensados. A ideia era ele ter acesso ao FGTS e conseguisse uma graninha, para quem sabe voltar à terra natal.



 Notas:
1. Significado da expressão até aí morreu neves. 
       https://www.dicionarioinformal.com.br/significado/at%C3%A9%20ai%20morreu%20o%20neves/26679/
     
  2. As lojas de departamento e de supermercados têm (ou tinham) funcionários de vários setores, de plena confiança, que fazem papel de fiscais, denunciando fraudes, furtos e comportamento estranho de outro empregado. São fiscais informais e ganham um extra oficiosamente pelo serviço. 

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