6 de janeiro de 2021

ENTREVISTA

 

Mencionei noutro dia a entrevista imaginária que o Nelson Rodrigues bolou para sacanear Helder Câmara, que foi bispo auxiliar no Rio de Janeiro e mais tarde arcebispo de Olinda e Recife.

Por causa de sua atuação política sobretudo de critica aos governos militares, Helder Câmara foi rotulado de comunista.

Abro aqui um parêntesis para reparar um esquecimento: Golbery do Couto e Silva. Citei Odylio Denis e Henrique Lott como bons e velhos generais e não mencionei talvez o que tenha sido o mais cerebral deles.

Lembrei agora porque no dizer de Golbery no Brasil não tinha comunista, mas algumas pessoas estavam comunistas. Foi em entrevista nas páginas amarela da Veja.

Algum tempo depois desta entrevista o Eduardo Portella, então ministro da educação, parafraseou Golbery, dizendo que não era ministro, estava ministro... e foi reverenciado pelo plágio.

Volto a Nelson e sua entrevista imaginária com Helder Câmara que era expoente da "nova igreja".

Eis a crônica, a concepção da entrevista e a própria conversa imaginária: 

“(...) Até que, um dia, na crônica, ocorreu-me a idéia das ‘entrevistas imaginárias’. Aí estava a única maneira de arrancar do entrevistado as verdades que ele não diria ao padre, ao psicanalista, nem ao médium, depois de morto. 

“Fascinou-me a ‘entrevista imaginária’. Precisava, porém, arranjar-lhe uma paisagem. Não podia ser um gabinete, nem uma sala. Lembrei-me, então, do terreno baldio. Eu e o entrevistado e, no máximo, uma cabra vadia. Além do valor plástico da figura, a cabra não trai. Realmente, nunca se viu uma cabra sair por aí fazendo inconfidências. Restava o problema do horário. Podia ser meia-noite, hora convencional, mas altamente sugestiva. Nada do que se diz, ou faz, à meia-noite, é intranscendente. Boa hora para matar, para morrer ou, simplesmente, para dizer as verdades atrozes. 

“(...) E súbito um nome ilumina minhas trevas interiores: -- ‘D. Hélder!’. De todos os vivos e mortos do Brasil, era ele o mais urgente, o mais premente. E, de mais a mais, uma batina é sempre paisagística. 

“Ontem, finalmente, houve, no terreno baldio, a ‘entrevista imaginária’. À meia-noite, em ponto, chegava d. Hélder. Lá estava também a cabra, comendo capim, ou, melhor dizendo, comendo a paisagem. À luz do archote, começamos a conversar. Primeira pergunta: -- ‘O senhor fuma, d. Hélder?’. Resposta: -- ‘A entrevista é imaginária?’ Acho graça: -- ‘Ou o senhor duvida?’. E d. Hélder: -- ‘Se é imaginária, fumo. Qual é o teu?’. Digo: -- ‘Caporal Amarelinho’. Cuspiu por cima do ombro: ‘Deus me livre. Mata-rato!’. 

“Faço a pergunta: -- ‘Que notícias o senhor me dá da vida eterna?’. Riu: -- ‘Rapaz! Não sou leitor do Tico-Tico nem do Gibi. Está-me achando com cara de vida eterna?’. No meu espanto, indago: -- ‘E o senhor acredita em Deus? Pelo menos em Deus?’. O arcebispo abre os braços, num escândalo profundo: -- ‘Nem o Alceu acredita em Deus. Traz o Alceu para o terreno baldio e pergunta’. 

“Ele continuava: -- ‘O Alceu acha graça na vida eterna. A vida eterna nunca encheu a barriga de ninguém’. D. Hélder falava e eu ia taquigrafando tudo. Aquele que estava diante de mim nada tinha a ver com o suave, o melífluo, o pastoral d. Hélder da vida real. E disse mais: -- ‘Vocês falam de santos, de anjos, de profetas, e outros bichos. Mas vem cá. E a fome do Nordeste: Vamos ao concreto. E a fome do Nordeste?’. 

“Não me ocorreu nenhum outro comentário senão este: -- ‘A fome do Nordeste é a fome do Nordeste’. D. Hélder estende a mão: -- ‘Dá um dos teus mata-ratos’. Acendi-lhe o cigarro. ‘Diz cá uma coisa, meu bom Nelson. Você já viu um santo, uma santa? Por exemplo: -- Joana D’arc. Já viu a nossa querida Joana D’arc baixar no Nordeste e dar uma bolacha a uma criança? As crianças lá morrem como ratas. E o que é que esse tal de são Francisco de Assis fez pelo Nordeste? Conversa, conversa!’

“Lanço outra isca: -- ‘É verdade que o senhor vai para o Amazonas?’. Riu: -- ‘Onde fica esse troço? Ó rapaz! Ainda nunca desconfiaste que a fome do Nordeste é o meu ganha-pão? E o Amazonas é terra de jacaré. Tenho cara de jacaré?’. Concordo em que ele não tem nenhuma semelhança física com um jacaré. Indago: -- ‘E o comunismo?’. 

“D. Hélder conta: -- ‘Quando estive nos Estados Unidos, bolei um cartaz assim: O arcebispo vermelho! Era eu o arcebispo vermelho, eu!’. Insinuei a dúvida: -- ‘Mas esse negócio de comunismo é meio perigoso’. Nova risada: -- ‘Perigosa é a direita. A direita é que não dá mais nada. O arcebispo vermelho fez um sucesso tremendo nos Estados Unidos.’. 

“ Pede outro cigarro. Fez novas confidências: -- ‘Sou homem da minha época. Na Idade Média, eu era da vida eterna, do Sobrenatural. Fui um santo. É o que lhe digo: -- cada época tem seus padrões. Benjamim Costallat, no seu tempo, era o Proust. O charleston já foi a grande moda. Pelo amor de Deus, não me falem da vida eterna, que é mais antiga, mais obsoleta do que o primeiro espartilho de Sarah Bernhardt. Hoje, a moda não é mais Benjamim Costllat, nem o charleston. Entende? É Guevara. O santo é Guevara. E acompanho a moda’. 

“Desfechei-lhe a pergunta final: -- ‘E a Presidência da República?’. D. Hélder respira fundo: -- ‘Depende. A fome do Nordeste é o barril de pólvora balcânico. Fome, mortalidade infantil, muita miséria e cada vez maior. Chegarei lá’. Era o fim da ‘entrevista imaginária’. Despedi-me assim: -- ‘Até logo, presidente’. Respondeu: -- ‘Obrigado, irmão’. E antes de partir fez a última declaração: -- ‘Olha, as donas de casas têm uma simpatia para curar dor de barriguinha em criança. Acredito mais na simpatia do que na ressurreição de Lázaro’. Disse isso e sumiu na treva.”


Nota: O Alceu citado na crônica era o pensador católico Alceu Amoroso  Lima, mais conhecido pelo pseudônimo de Tristão de Athayde.

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