Por
Carlos Frederico March
(Freddy)
Quando
escrevi minhas toscas histórias a quatro mãos com meu irmão Paulo (Riva neste
blog), fiz uso de um personagem chamado Freud March (pronuncia-se Fróid March),
“psicólogo de mesa de botequim”. É um de meus alter-egos nas histórias e apareceu
fruto de tendência que eu tenho de analisar o comportamento alheio sem base
alguma (vale admitir).
Quem
ficava puta com isso era minha psicoterapeuta, que achava que eu estava a
esmerdalhar sua profissão (rs rs).
O
fato é que Freud March nasceu muito antes...
O
COMEÇO
Como
alguns seguidores do blog já sabem, minha mãe ficou cega a partir de 1958,
paulatinamente. Descolamento de ambas as retinas e à época poucos recursos
havia. Eu dei sorte porque descolei também uma e, apesar de ter a visão
altamente prejudicada no olho direito, cego não fiquei.
Inconformada com
seu destino, ela se recolheu à cama e todos que iam à nossa casa conversavam
com ela no seu quarto. Nossa sala de estar passou a ser um elemento decorativo
em casa.
O
fato é que eu me acostumei a me deitar a seu lado e conversar às
vezes mais de hora. Em parte, era um descanso para meu pai, que se arvorara em
olhos de minha mãe e vivia a seu lado 24 horas, abdicando de sua
própria personalidade. Leu incontáveis livros para ela, levava-a para passear,
ao teatro....
Foi
numa dessas conversas que ela me confessou porque era tão ligada a mim, quase
uma obsessão. Foi desdobramento de um caso de depressão pós-parto, clássico
hoje em dia.
À
época, apresentou-me uma leitura diferente do caso (acho que não se falava na
tal DPP), racionalizando o episódio a seu modo. Ela me disse que a real razão dela
me desprezar assim que eu nasci foi minha cor (!), escura demais para seu gosto
pessoal. Ela era branca leite, meu pai era moreno. Nasci talvez um pouco mais
moreno do que me tornei depois, pois clareei (sem menção a Michael Jackson, por
favor...).
Seu
desprezo por mim durou cerca de uma semana, ela me relatou. Com muito tato, a
parteira/ginecologista (Dra. Gertrudes) fê-la perceber que ali estava um ser
indefeso e que nada tinha a ver com seus
traumas ou preferências. Logo tive uma babá negra, a Celina. Não lembro de
minha mãe ter relatado se Celina chegou a ser minha ama de leite.
O
desdobramento disso tudo, como comentei acima, foi que passei a ser tratado com
privilégios, por puro remorso ou sentimento de culpa.
AS
CRISES
Mamãe
brigava muito com meu pai, comigo e com meu irmão. Na verdade, brigava contra o
destino cruel da cegueira, para ela injusto. E eu era chamado para atuar como
juiz de uma situação de litígio.
Como
assim? Sim, eu, com parcos 10, 11, até uns 16 anos de idade, era amiúde chamado
ao leito materno para acalmá-la, quando meu pai tinha esgotado os argumentos,
ou quando ele era o alvo da ira momentânea.
Aprendi
à custa de muita porrada (virtual) a sustentar discussões com minha mãe. Ela
usava frequentemente um recurso mortal para vencer debates, que era pegar
palavras soltas na argumentação alheia e desviar o rumo de conversa, e isso
acompanhado de lágrimas ou mesmo gritos de ira. Ou seja, para ela não estava em
jogo o assunto, e sim ganhar a discussão!
Diga-se
passagem que não era um recurso exclusivo de minha mãe, parece-me que as
mulheres em geral são peritas nesse quesito. Contudo, batalhei duro. Custou-me
anos a aprender a retomar o rumo lógico durante as acirradas contendas verbais.
Não
raro o cenário era prejudicado pelo fato dela estar sob efeito de barbitúricos
que não faziam mais efeito mas que obnubilavam seu raciocínio, tornando a
argumentação difícil e desgastante. Foi assim, na prática dolorosa (como são
todas as crises familiares), que aprendi negociação sob pressão.
AS
CONVERSAS
Durante
os momentos mais calmos, minha mãe me contava muito da vida, repassando suas
experiências. Passei muitas, incontáveis horas deitado ao lado dela
conversando. Era o que ela, cega, mais podia fazer: conversar.
Pode
parecer estranho, mas quem me iniciou nos assuntos teóricos do sexo foi ela. Meu
pai não tinha jeito pra isso, a gente mal se falava (essa é a pura verdade) e minha
mãe era bem descolada.
Foi
quando eu tinha 12 anos que ela começou a me contar sobre o universo. Nosso
quintal tinha bom espaço e pouca iluminação. À noite a família se juntava para
conversar debaixo das estrelas e isso vinha atraindo minha atenção. Compraram-me
um álbum de figurinhas sobre astronomia (em 1963), logo a seguir me presentearam
com telescópio (Natal de 1965).
Não
sei por mera atração ou se por perceber inconscientemente que minha mãe jamais
veria novamente aquilo que me relatava com tanto esmero, apaixonei-me pelo
tema. Até hoje, como se constata em inúmeros posts no Generalidades
Especializadas na série Papo de Astronomia.
Comprei
inúmeros livros técnicos (a maioria em inglês) e me tornei assinante de
diversas publicações estrangeiras. Tornei-me o que é chamado de “armchair
amateur astronomer”, que designa o astrônomo amador que se baseia em livros,
raramente observa ao telescópio.
ESTÍMULO
AOS ESTUDOS
Minha
mãe acompanhava nossos estudos e participava ativamente dos grupos de trabalho
da escola, quando minha turminha se reunia lá em casa. Podia-se dizer que “estudava
junto” e nos levava (a mim e aos meus colegas) a um nível de comprometimento
com o aprendizado sempre muito elevado. Papai também participava, em geral na
formatação dos trabalhos a serem apresentados, pois tinha bastante experiência
didática.
Colocaram-me
para aprender piano desde meus 8 anos (1959). Meus pais compraram muitas
coleções de LPs e minha mãe me estimulou a ouvi-las lendo os fascículos
explicativos. Sem explicações, muita coisa da música erudita passa despercebida
e não raro fica incompreensível.
A
importância que minha mãe deu ao piano foi tal que durante minhas horas diárias
de estudo era terminantemente proibido a quem quer que seja me interromper.
Fosse meu pai, um amigo me chamando, fosse alguém ao telefone, era barrado.
Para
seu desespero, logo vivenciamos a era do rock, com Beatles, Rolling Stones e a
Jovem Guarda. Não posso negar que houve uma certa anuência de meus pais, mesmo
que pesarosa: ganhei uma linda guitarra elétrica no Natal de 1967 para dar
andamento a um pequeno grupo de rock que pensávamos em formar na turma do
bairro.
Piano
não era muito bem-vindo no cenário pop-rock e não existia ainda teclado barato.
Mesmo tendo aderido ao novo movimento musical, eu mantive minhas raízes
eruditas, pois me agradei dos gêneros rock progressivo (anos 70) e hoje em dia
heavy metal sinfônico. Todos guardam semelhança de forma com as peças
clássicas, incluindo libretos explicativos do enredo.
O
ACIDENTE
O
acidente com minha mão direita em março/1968 foi um marco em minha vida,
verdadeiro divisor de águas. Foram seccionados 11 tendões, 2 nervos, 1 artéria.
10 tendões foram religados e 1 dos nervos voltou a funcionar.
Tenho
limitações de movimento e sensibilidade, com as quais aprendi a conviver. Toco
piano e teclados, mas com adaptação das partituras no caso de clássicos. Violão
de nylon também é confortável de dedilhar, mas o uso de palheta para violão de
aço ou guitarra elétrica é impossível pela insensibilidade da ponta dos dedos:
ela me escapa.
Foi
esse acidente que me levou a perceber que precisava mudar e me libertar do jugo
materno. Antes eu estava tranquilo, achando que a vida duraria 200 anos (força
de expressão) e que eu teria todo o tempo do mundo para vir a ser eu mesmo.
Ficar quase aleijado me jogou na cara que o amanhã era inesperado, para o bem
ou para o mal.
Para
minha mãe, foi um baque duplo. Sentiu morrer (eu ia escrever “viu morrer”, mas
como, se era cega?) a esperança de me formar pianista clássico, concertista.
Abro parêntesis para confessar que eu mesmo não queria isso para mim, mas não
conseguia me desvencilhar da teia montada à minha volta.
Quanto
ao cotidiano, dizia-me ela que havia “perdido um filho”, na esperança de me ter
de volta à barra de sua saia. Mas eu já estava irremediavelmente mudado. Minha
verdadeira adolescência começara, talvez tarde demais (1968, 17 anos).
Com
essa nova consciência adquirida através de uma fatalidade, minha vida seguiu.
Vieram o vestibular, a faculdade (PUC-RJ), a Embratel (meu único emprego), o
casamento (também único), a experiência de 7 meses na Alemanha, as filhas...
FREUD
MARCH
Freud
March a essa altura, sem mesmo se dar conta, já havia nascido. Passou a agir
aqui e ali, para tentar ajudar a si mesmo e aos amigos que o procuravam em
mesas de botequim, reais ou virtuais.
De
vez em quando, Freud March sai das histórias fantásticas e, tornando-se real, se
mete na vida alheia e é rechaçado com veemência. Como assim ele se arvora em
saber o que anda na cabeça dos outros?
É
verdade, mas se Freud March podia, com 11 ou 12 anos de idade, ser chamado a aplacar
a angústia desmedida de sua própria mãe cega, porque hoje, com a experiência de
décadas de vida, não poderia sentar-se para leigamente debater comportamento,
seja o seu próprio ou o de familiares, amigos e colegas?
Créditos:
Acervo do autor, caracterizado como
Freud March
Hum! Um caso de dupla personalidade?
ResponderExcluirAna Maria,
ResponderExcluirO só fato de você tirar o pneu, já deixou o Freddy contente. O comentário fica irrelevante (rsrsrs).
KKkkkkk .... já brinquei aqui algumas vezes, vcs lembram ?...estamos falando com Freddy, Carlos, Freud March, Carlos Frederico, Charles ? rsrsrs.
ResponderExcluirPara não entrar e sair sem nenhum comentário, vou apenas mencionar o meu post :
http://jorgecarrano.blogspot.com.br/2015/02/lista-de-gratidao.html
Nele menciono meu irmão :
Carlos, meu irmão – o significado e o valor da individualidade.
Por tudo que vocês leram no post do Freddy, para quem me conhece ou conheceu parte da nossa vida de adolescente, sabe bem a abissal diferença entre nós dois, criados sob o mesmo teto.
Foi um mega aprendizado, para mim ... o que significa INDIVÍDUO. Individualidade em sua maior essência. Embora muitas das percepções, compreensões e certezas tenham surgido tardiamente, de minha parte e da parte da minha mãe.
Mas .... TUDO valeu a pena ! E como !
E como tudo aqui termina mesmo em futebol, eu hoje estou numa dúvida cruel ... qual jogo ver ? Barça x PSG ou Bayern x Porto ?
Melhor do que estes dois, será Vasco e Rio Branco, logo mais (rsrsrs).
ResponderExcluirNas referidas histórias, o personagem principal é o próprio Freddy (Carlos Frederico sai de si mesmo e vai viver suas fantasias como Freddy March), sendo que os demais aparecem eventualmente:
ResponderExcluirFreud March - psicólogo de mesa de botequim.
Miami March, ou simplesmente MM, detetive desastrado, tentando atabalhoadamente desvendar tramas e crimes.
Vale registrar que MM não foi inventado por Carlos Frederico e sim por um amigo, que participou de algumas histórias no passado. Aliás, ele próprio também tinha seus personagens pessoais: Compêndio Siqueira, Lulu Cogumelo e Caps Lock Joe.
Teríamos, pois, 4 personalidades: o real e 3 imaginários. Que turma, hein?
O Freddy March que assina os textos no blog é o imaginário personagem fingindo ser real.
Dãããã......
<:o))
Li e acabei de ter uma distensão cerebral .... kkkkk
ResponderExcluirIsso porque é "psicanalizado". Se não, seriam dezenas de personagens. rs
ResponderExcluirJá leram o romance Sybil, de Flora Rheta Schreiber? Excelente!
ResponderExcluirA seguir, um spoiler: não leia se não quiser saber o final da história!
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Ao longo da trama, a psicanalista começou a desencavar as personalidades ocultas em Sybil, que eram responsáveis pelo seu errático comportamento. Ao final, chegou ao fantástico número de 18!
4 é fichinha!
<:O)