Jorge Carrano*
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Quando eu era criança - e parece que foi outro dia - a gente morava em casas que não tinham grades e, para falar a verdade, quase nunca o portão funcionava, ou ficava trancado. Meu cachorro, que tomava algumas vacinas e sempre comeu sobras de nossa comida, morreu de velho. Nunca conheceu uma tosa, dentista ou psicoterapeuta que analisasse seu comportamento e, coitado, nunca teve um xampu ou um osso sintético. Roía mesmo era fêmur de boi.
Numa das ruas em que morei, a gente jogava botão na calçada, soltava pipa com cerol que fazíamos quebrando lâmpadas usadas, e às vezes algumas novas…. e sobretudo jogávamos bola e andávamos de bicicleta. Todo mundo jogava, até aqueles que considerávamos o “maior perna-de-pau”. Tínhamos espaço para todos. Nos intervalos do jogo, bebíamos água da torneira mesmo, em qualquer casa da rua que, como a nossa, estava sempre com o portão aberto. Entrávamos e bebíamos água. Simples assim, não era preciso interfonar...
E quando a brincadeira era bicicleta, ganhávamos a cidade. Nem celular, nem GPS, nem ideia de onde íamos, nossos pais só queriam que tomássemos cuidado com as ruas, e chegássemos cedo em casa, antes de escurecer.
Não havia obesidade infantil, nem psiquiatras, nem terapias diversas que nos dissessem, ou aos nossos pais, o que fazer, como se comportar, o que comer. Fazer ginástica era só para quem estava muito gordo. Ginástica era brincar. Na escola, meu boletim tinha notas vermelhas no início, mas depois eu me matava para elas ficarem azuis. Quando um aluno era reprovado, no ano seguinte fazia novos amigos, misturava-os aos velhos, e o mundo não acabava por isso. Escola era só isso, escola. Não tinha que nos “educar para a vida”…
Quase todo mundo queria ser engenheiro, advogado ou médico. E depois virava dentista, arquiteto, dono de loja, vendedor, vagabundo.
A televisão era um achado, a versão colorida, então, era um sonho. As válvulas queimavam toda hora, e esquentavam pra burro, mas a gente adorava até mesmo aquela imagem tosca. E tinha que levantar do sofá para trocar de canal.
O cinema tinha cadeiras duras, de madeira. Quando eram estofadas, estavam sempre furadas. Fumar era proibido, mas em toda sessão alguém se arriscava, e aí vinha o homem da lanterninha e parava a projeção. E os filmes, então? A gente vivia gritando para o projetista, “olha o foco!!!”….e às vezes assistíamos vários minutos do filme como se estivéssemos bêbados… O som também era péssimo, não havia Dolby surround.
Frango a gente chamava de galinha mesmo. E havia lojas que as vendiam vivas, para você levar pra casa, depenar, botar na panela…
Nunca tomei uma vitamina. Suplemento alimentar, então, não sei nem o que é. Só ia ao médico quando tinha febre, ou muita dor. O médico receitava guaraná com biscoito de chocolate, provavelmente para disfarçar o gosto ruim do remédio. Aposto que aquele remédio devia fazer um mal danado.
Nenhum carro do meu pai teve ABS, air bag, encosto para a cabeça, ar digital ou computador de bordo. Não tinham nem espelho do lado direito… A gente viajava do Rio para São Paulo em 6 horas, no banco de trás de um Fusca, e nem cinto de segurança tínhamos que usar. Íamos deitados dormindo, ou dando tiros em bandidos imaginários que se escondiam nas margens da rodovia. Pai, para pra eu fazer xixi que eu tô apertado!!
Piolho a gente tratava com Neocid, um pó que fedia pra burro. Música era numa eletrola colorida. O leite vinha em garrafas e, depois, passou a vir em saquinhos. Nojentos. O tênis era Ki-chute ou Bamba. All Star, só pra quem tinha muita grana. Tive caxumba e catapora, mas escapei do sarampo. Eram as doenças da época. E bom mesmo era Grapette.
Comíamos pão com muita manteiga de lata, amarela, gordurosa e cheirosa. Pão de farinha branca, com suco cheio de açúcar. O suco, aliás, era feito de fruta espremida. O banho de mangueira no quintal quebrava o maior galho, e ninguém reclamava de não ter piscina.
Para tirar uma fotografia, você precisava primeiro comprar um filme (de 12, 24 ou 36 “poses”) e mandar revelar depois. Se entrasse luz na câmera, o filme estivesse mal encaixado ou você tremesse na hora de apertar o botão, já era, só ia saber depois de pegar as cópias no laboratório.
Não havia Playstation, Nintendo, Internet, banda larga, iPod, MP3 etc. por um motivo muito simples: não havia computador! O telefone tinha fio, acredite, e era preto e feito de um material pesado. Para discar, depois de esperar “dar linha” (o que podia ser meia hora), era preciso digitar os números num disco…
Celular? Isso era coisa do Flash Gordon. Celular com câmera, então, nem o Flash Gordon tinha. Mas tínhamos o Rin-Tin-Tin, o Asterix, a Luluzinha, o Fantasma, o Mandrake, e tantos outros heróis bem menos andróginos e mais interessantes que os atuais.
Não tínhamos amigos virtuais. Nossos poucos amigos eram reais, em geral vizinhos ou colegas da escola. Tínhamos todo o tempo do mundo, numa coisa que os adultos chamavam de futuro.
Nosso mundo era muito imperfeito e, talvez por isso mesmo, fosse tão interessante.
E parece que foi outro dia.
Não sei quanto a ele, por mim se algum desavisado, mesmo com os créditos que dei, achar que sou o autor do texto, e não meu primogênito, ficarei contente.
ResponderExcluirOlha... mesmo lendo os créditos, pelo texto parecia alguém da minha geração... Vai dizer que na maior parte, este texto não poderia ser seu?
ResponderExcluirEsta é uma das razões pelas quais, Ana Maria, disse no primeiro comentário que ficaria contente se acharem que sou o autor.
ResponderExcluirDe certo modo sou um coadjuvante, no papel do pai que não tinha freio ABS no automóvel e era dono do fusquinha onde ele viajava sem cinto de segurança e até deitado no banco trazeiro, com o irmão.
Carrano(s)
ResponderExcluirÉ verdade que a gente teve oportunidade de realmente viver em nossa infância. Eu não negarei o progresso, gosto muito dele e das coisas (objetos e serviços) que podemos ter hoje. Só que agora entendo meu falecido pai, que dizia que antigamente é que era bom.
O mundo de hoje permite que crianças evoluam sem ter contato com outras. Dizem alguns que hoje elas têm acesso a muito mais coleguinhas (virtualmente), no entanto é fácil descartá-los quando nos aborrecem. A convivência se torna penosa, não se aprende mais a ter limites sociais, não se exercita o ganhar e perder de uma maneira sadia.
Já vejo crianças serem "educadas" com pequenos gadgets de vídeo com jogos de luta e disputa, com acesso instantâneo via rede mundial a assuntos que suas toscas mentes ainda não sabem discernir. Como amadurecerão? Como agirão elas ao entrar no mercado de trabalho, quando forem gerentes, ou assumirem cargos que acabarão por influenciar as NOSSAS vidas?
Isso dá muita conversa!
Abraços aos dois.
Carlos
Eu, apesar da tenra idade, me lembro vagamente de ter vivido tudo isso. Parece outra encarnação...
ResponderExcluirEu moro numa das cidades mais lindas do Brasil, Florianópolis; está um lindo domingo de sol e meu filho não abriu sequer a janela: aproveita todos os seus minutos de "folga" em frente ao computador, onde a vida virtual parece bem mais interessante do que a real.
Aí eu fico me perguntando: do que ele sentirá saudade, como nós, daqui a 30 anos?
Claudinha, obrigado pela visita e comentário.
ResponderExcluirPor que você não escreve um post para nós, sobre Florianópolis, no seu dizer" uma das cidades mais lindas do Brasil"?
Seu estilo, destituído de rebuscamentos desnecessários, sem cerimônias e reverências é muito gostoso de ler.
Estou torcendo pra que você aceite a empreitada.
Beijo para você, marido e filho.