O texto publicado abaixo, a guisa de post, é da lavra de Carlos Frederico Marques Barroso March, um grande gourmand*, que a par de conhecer o assunto, pela experiência adquirida frequentando boas mesas, deu-se ao trabalho de pesquisa para dar embasamento técnico à matéria.
O Carlos Frederico, que por formação é engenheiro de telecomunicações, mata-nos de inveja por duas razões básicas: está aposentado e pode se dar ao prazer de comer e beber com classe e requinte.
Tudo começou quando o monge beneditino francês Pierre Pérignon necessitou de vedação mais adequada para sua recente descoberta: o champagne, por volta de 1680. Antes, usava-se materiais toscos para tampar os vasilhames de serviço de vinho, dado que sua distribuição era feita em geral através de barricas, mas eram levados à mesa em frascos menores, que aos poucos passaram a ser de vidro escuro. A vedação dessas garrafas podia ser de madeira, pergaminho, pano, embebidas eventualmente em azeite...
O uso da cortiça em rolhas que originalmente eram cônicas, resolveu não só o problema de Don Pérignon, mas também o de outros produtores da época: o gargalo das garrafas elaboradas artesanalmente não era padronizado, de modo que havia necessidade de um produto versátil e adaptável à irregularidade do diâmetro da boca. A tecnologia para introdução de rolhas cilíndricas em gargalos estreitos veio a partir de 1830 resolver a questão da perfeita vedação e guarda de longa duração - é a que se usa até hoje.
E o que é a cortiça? É a casca do sobeiro (quercus subes), árvore longeva encontrada em Portugal - principal produtor mundial - mas também na Espanha, Itália, França, Marrocos, Argélia. É um material vegetal com uma estrutura de células altamente impermeável, isolante térmico e acústico, resistente ao atrito, extremamente elástico e compressível. O sobeiro pode durar de 150 a 200 anos e, convenientemente descascado, pode produzir cortiça com um período entre cortes de 7 a 9 anos. O primeiro deles só pode ser feito quando o sobeiro tem cerca de 25 anos de idade e diz-se que as três primeiras "colheitas" não são úteis para a produção de rolhas de qualidade.
Imagens do sobeiro (quercus subes) e parte da casca extraída, para fabricação de rolha. Fotos colhidas na Internet, no documentário EL CORCHO - A CORTIÇA.
Levando-se em conta que o número de sobeiros não é ilimitado, que plantado hoje só daqui a cerca de 40 anos é que ele se torna utilizável, e que a produção mundial de vinhos e a consequente necessidade de rolhas vem crescendo exponencialmente, é fato que em pouco tempo teremos escassez do produto.
No entanto, não foi apenas esse aspecto eminentemente comercial que estimulou a pesquisa, produção e uso de métodos alternativos para a vedação das garrafas de vinho, tranquilos ou espumantes. É a ocorrência do TCA (2-4-6-Tricloroanisol), uma substância volátil que emana das rolhas ao serem atacadas por certos fungos ou bactérias. Ele pode contaminar não só rolhas de cortiça como barris de madeira, embalagens de papelão e até o próprio ambiente da vinícola.
Pilhas de casca do sobeiro e no detalhe a espessura da csaca extraída. Imagens obtidas na Internet, no documentário EL CORCHO - A CORTIÇA.
Daí o hábito de cheirar a rolha assim que se abre um vinho. Diz-se que ainda há uma derradeira chance de que o desagradável odor de mofo não tenha se transmitido ao vinho. Daí o passo seguinte no serviço, que é cheirar e fazer a prova no copo do anfitrião antes de servir o conteúdo da garrafa aos convidados. Se contaminado, o vinho apresentaria "gosto de rolha" (francês: bouchonné, inglês: corked, espanhol: con corcho). A perda por contaminação por TCA gera um prejuízo por devolução de garrafas aos produtores calculado em torno de 500 milhões de euros anuais.
A alegada superioridade das novas rolhas artificiais sobre as tradicionais de cortiça é que são virtualmente imunes ao TCA. No entanto, por sua natureza não porosa, as rolhas artificiais não permitem a lenta evolução dos vinhos de guarda no silêncio das adegas, de modo que só são viáveis, ao menos na tecnologia atual, para vedação de garrafas de vinhos para consumo imediato ou daqueles raros exemplares que já são engarrafados prontos, maduros, evoluídos.
Como então definir as rolhas e suas alternativas? Comecemos pelas rolhas naturais, que existem em 3 versões básicas: maciça, de aglomerado e de espumantes.
A rolha maciça resulta direto das melhores porções da casca do sobreiro, tem alta qualidade e até épocas recentes era a tradicionalmente usada em todos os tipos de vinhos. Apesar de impermeável, permite uma passagem extremamente lenta de ar ao longo dos anos, que favorece o amadurecimento dos vinhos de guarda.
A rolha de aglomerado usa cortiça moída com uma cola especial. Mas com menor elasticidade, cede com o tempo e não se presta a vedar vinhos de guarda, sendo mais adequada a vinhos mais simples e de consumo rápido. Um ponto negativo é a probabilidade de repassar o cheiro da cola usada para sua fabricação ao líquido, portanto deve ser usada com muito critério, mesmo em vinhos baratos.
A rolha de espumantes é um engenhoso desenho altamente funcional usando uma seção de aglomerado e outra de lâminas de cortiça maciça, equilibrando as características positivas de cada tipo de material.
E as alternativas atuais? Quais seriam?
1) Rolhas de plástico. De baixo custo, não desenvolvem TCA, podendo ser coloridas ou imitar as de cortiça. Os maiores usuários dessa alternativa têm sido os americanos, chilenos e argentinos, em vinhos de menor preço e expectativa de consumo de até 5 anos. Isso porque observou-se que devido à quase inexistência de elasticidade, a vedação entre a rolha e o vidro não é perfeita e permite oxidação exagerada nos vinhos de guarda, estragando-os ao longo do tempo.
2) Tampas de rosca. Essa alternativa já tem grande aceitação na Austrália, Nova Zelândia e África do Sul, entre outros crescentes usuários do formato no mundo todo. Tem inúmeras vantagens, como vedação perfeita, ausência de TCA, dispensa do uso de saca-rolhas, o vinho pode ser guardado em pé... Há observação de discreta alteração do paladar por ausência total de ar, uma espécie de abafamento ao longo do tempo, mas no geral é o método mais promissor para engarrafamento em massa, pela qualidade da vedação e baixo custo.
3) Tampas de vidro. A "vino-lok", desenvolvida e fabricada pela Alcoa na Alemanha, usa como vedação um anel de silicone. Parece ser uma grande alternativa para vinhos tranquilos, dado que a garrafa pode ser tampada após o uso com facilidade, é bonita e totalmente reciclável, grande apelo comercial hoje. Seu alto preço ainda é um empecilho para disseminação do uso.
4) Tampa Zork. Engenhosa criação para uso em vinhos de baixo custo, sejam tranquilos ou espumantes. Tira-se um selo espiral e a tampa pode ser sacada manualmente. Seu desenho possibilita o fechamento da garrafa para uso posterior, mesmo no modelo especial para espumantes.
Tampas de vidro
"vino-lok"
5) Rolha Pro-Cork. Essa seria na verdade uma rolha de cortiça, mas com tratamento especial nas áreas de contato com o vidro e com o líquido, que promete impossibilitar a contaminação da cortiça por TCA, mantendo no entanto as propriedades de uma rolha tradicional.
Isso tudo exposto, resta o lado emocional. Independente de TCA e de vinhos eventualmente estragados por falha de vedação ou deterioração da cortiça, o glamour do ritual de extração da rolha ainda é o maior empecilho para a disseminação das novas tecnologias entre o público em geral. Os usuários resistem, os restaurantes os atendem, de modo que os produtores têm de inserir as novidades no mercado com calma, vagar, mas com firme determinação.
Uma maneira de conquistá-los, e alguns produtores já o fazem, é lançar alguns rótulos de alta qualidade com tampas alternativas, de modo a mostrar ao consumidor que elas não se restringem a vinhos baratos e de consumo de massa, mas são soluções viáveis para resolver alguns dos problemas que assolam o mundo do vinho.
Mesmo assim, ainda não apareceu nada melhor que a boa e velha rolha de cortiça maciça para tampar os veneráveis vinhos de guarda!
Rolha de cortiça, para vinhos de guarda
Caro amigo Carlos Frederico,
ResponderExcluirSeja bem-vindo.
Muito obrigado pela colaboração.
Espero que tenha gostado da experiência e apareça neste espaço com frequência.
Abraço forte.
Grande Fred!
ResponderExcluirExcelente texto. Parabéns!
- Felipe
Aquele aparelinho - wine saver - chamado vacu vin, é eficiente mesmo? Por quanto tempo?
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