Piorava a cada minuto. Ao cabo de poucos dias, já sem fala, com o que restava de sua lucidez, antes da inconsciência que precederia a morte, entendeu ser hora de manifestar sua última vontade. Tinha direito.
Quando nasceu, já nos primeiros dias de vida, amarraram-lhe em torno do pescoço um babadouro. Na primeira infância, o traje de marinheiro, com gravata, em voga na época, era sua roupa de passeio. Ingressou na escola. O uniforme pedia gravata, peça que o acompanharia o resto da vida, pois terminados os estudos fundamentais, foi trabalhar em um banco, no qual fez carreira. Sempre engravatado. Seu temor era que, cumprindo tradição familiar – fora assim com seu avô e com seu pai – fosse enterrado com seu melhor terno e a indefectível gravata.
Fez - em movimento lento e sem coordenação - mímica para a mulher, quase viúva, sentada junto a sua cabeceira, sugerindo que queria escrever. Ela entendeu.
Correu a procurar um papel. Não se deu ao trabalho de buscas por um bloco de notas. Serveria, pela urgência que o caso exigia – que poderia ele querer? – até mesmo o papel que embrulhara o pão, ainda sobre a mesa de refeição. Rasgou, às pressas, um pedaço que saiu irregular, mas de tamanho suficiente para escrever um bilhete, se fosse o caso. A esferográfica estava na mesinha, com a caderneta de telefones.
Com as mãos trêmulas, e ajudado pela mulher, que abriu e juntou as mãos, de sorte a dar apoio ao papel, escreveu: enterro esgargalado.
A cabeça, que levantara um tantinho, voltou abrupta ao travesseiro. A mão pendeu para um lado segurando frouxamente a caneta. Estava morto.
Prantos e telefonemas. Chegaram os filhos, noras e netos. E uma vizinha que acorreu, prestativa, logo que chamada. Alguém precisava cuidar da logística. Água com açúcar, chá de camomila, comida para as crianças, encontrar as velas e acende-las, essas coisas. E dona Alzira era como uma irmã.
O médico, que deveria esperar por isso a qualquer momento, foi chamado apenas para atestar o óbito. A viúva, inconsolável, soluçando abraçada a um dos filhos, lembrou-se do papel onde o falecido escrevera e caira ao chão.
Apontou, aos soluços e balbuciando alguma coisa ininteligível, mas que era suficiente para indicar que queria que o filho o pegasse.
Enterro esgargalado. Que quer dizer isto? Já teria perdido o tino? Esgargalado? Estaria se sentindo como esganado? Em vão. Ninguém sabia o significado. Ainda tentaram o médico, quando este chegou. Mas também o facultativo ignorava o sentido.
Coitado. Foi enterrado como seus antepassados, com o terno preto e de gravata.
Se alguém mais da família tivesse lido o Saramago, no “Homem Duplicado”, de onde o de cujus tirou a palavra que jamais esqueceu, por ser inusual, teriam podido satisfazer seu último desejo.
Relendo por sugestão, tive de recorrer ao Dicionário Eletrônico Houaiss para saber o significado de esgargalar, apesar de que o texto de certa maneira já apontava para o sentido. Ler Saramago nem pensar.
ResponderExcluirInfelizmente o pobre foi enterrado sem ter seu desejo atendido por falta do Houaiss - ou de Saramago.
<:o)
Pois é, Freddy, quando de meu recadastramento ficcional, fui aconselhado a ser mais tolerante, por causa de minhas preferência literárias, musicais, artísticas e filosóficas.
ResponderExcluirVeja em:
http://jorgecarrano.blogspot.com.br/2015/10/recadastramento.html